Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro V/IV

IV.


PLAINMONT.


Plainmont, perto de Torteval, é um dos tres angulos de Guernesey. Ha, na extremidade do cabo, uma corôa de relva que domina o mar.

O cume é deserto.

Tanto mais deserto quanto ha alli uma casa.

Aquella casa augmenta o horror da solidão.

Dizem que é mal assombrada.

Assombrada ou não, o aspecto é medonho.

É feita de granito, tem um só andar, e está no meio da relva. Não tem aspecto de ruina. É perfeitamente habitavel. As paredes são grossas e o tecto solido. Não falta uma só pedra ás paredes, nem uma só telha ao telhado. Tem uma chaminé de tijolo. A casa está de costas para o mar. A fachada do lado do mar é apenas uma parede. Examinando bem essa parede vê-se uma janella murada. Ha tres trapeiras, uma a leste, duas a oeste, muradas todas. A frente da casa tem uma só porta e janellas. A porta é murada e as duas janellas de baixo tambem. No primeiro andar, e é isso que espanta logo ao principio, ha duas janellas abertas; mas as janellas tapadas são menos assustadoras que as janellas abertas. Por estarem abertas, apparecem negras em pleno dia. Não tem vidros nem caixilhos. Abrem para as trevas do interior. Dissera-se umas orbitas vasias de olhos arrancados. Nada ha naquella casa. Vê-se pelas janellas abertas o descalabro de dentro. Nem retabulos, nem entalhos de madeira, pedra núa. Parece um sepulchro com janellas para deixar que os espectros olhem para fóra. As chuvas alluem os alicerces do lado do mar. Algumas ortigas agitadas pelo vento beijam a barra das paredes. No horisonte, nenhuma habitação humana. Aquella casa é uma cousa vasia e silenciosa. Mas quem pára e põe o ouvido á parede ouve confusamente um bater de azas assustadas. Por cima da porta tapada, na pedra que faz a architrava, estão gravadas estas letras; ELM—PBILG, e esta data 1780.

De noite o luar lugubre penetra na casa.

Todo o mar está em roda da casa. A situação é magnifica, e por consequencia, sinistra. A belleza do lugar torna-se um enigma. Por que motivo aquella casa não é habitada por nenhuma familia humana? O lugar é bonito, a casa é boa. Donde procede esse abandono? Ás perguntas da razão ajuntam-se as perguntas da superstição. O campo é cultivavel, por que motivo está inculto? Não ha dono. A porta murada. Que tem pois este lugar? porque foge o homem? que se faz aqui? Se não ha nada, porque é que não ha ninguem? Quando todos dormem ha alguem acordado? A lufada tenebrosa, o vento, as aves de rapina, os animaes escondidos, os entes ignorados, apparecem ao pensamento e misturam-se aquella casa. A que passageiros serve ella de hospedaria? a gente imagina trevas de graniso e de chuva mettendo-se pela janella dentro. Ha na parte interior uns vagos signaes de chuva que gotejou: Os quartos fechados e abertos são visitados pelo furacão.

Commetter-se-hia algum crime alli? Parece que aquella casa, á noite, entregue ás trevas, deve chamar por soccorro. Será muda? Sahem vozes de dentro? Que faz ella na solidão? O mysterio das horas negras existe alli facilmente. A casa assusta ao meio dia: que será ella á meia noite? Contemplando-a, contempla-se um segredo. Pergunta-se, — porque a superstição tem a sua logica e o possivel a sua inclinação, — o que será aquella casa entre o crepusculo da noite e o crepusculo da manhã. A immensa dispersão da vida extra-humana tem acaso naquelle cume deserto um vinculo em que ella pára, e que a obriga a fazer-se visivel e a descer? O esparso vai redomoinhar alli? o impalpavel vai alli condensar-se? Enigmas. Sahe daquellas pedras o horror sagrado. A treva que está nesses quartos defesos é mais do que treva; é o desconhecido. Depois do sol posto voltam barcos de pescadores para terra, calam-se os passaros, o cabreiro que está atraz do rochedo vai-se com as suas cabras, as fendas das pedras darão passagem aos reptis mais animados, as estrellas começarão a olhar, soprará o vento, far-se-ha plena escuridão, as duas janellas estarão alli escancaradas. Abrem-se para o sonho; e é por apparições, larvas, phantasmas mal distinctos, sombras cobrindo luzes, mystenosos tumultos de almas e espectros, que a crença popular, estupida e profunda, traduz as sombrias intimidades daquella casa com a noite.

A casa é mal assombrada, esta palavra explica tudo.

Os espiritos credulos dão a sua explicação; mas os espiritos positivos dão outra. Nada mais simples do que essa casa, dizem elles. É um antigo posto de observação, do tempo das guerras da revolução e do imperio, e dos contrabandos. Foi construida para isso. Acabada a guerra, foi abandonado o posto. Não se demolio a casa por que pode tornar-se util. Taparam-se as portas e as janellas do rez do chão contra os stercorarios humanos, e para que ninguem podesse entrar; taparam-se as janellas do lado do mar, por causa do vento do sul e do vento de oeste. Eis tudo.

Os ignorantes e os credulos insistem. Em primeiro lugar a casa não foi construida no tempo das guerras da revolução. Traz a data de 1780, anterior á revolução. Depois, não foi construida para ser posto; tem as letras ELM-PBILG que são o duplo monogramma de duas familias, e que indicam, segundo o uso, que a casa foi construida para algum joven casal. Portanto foi habitada. Porque não o é agora? Se se tapou a porta e as janellas para que ninguem entrasse, porque motivo deixaram-se abertas duas janellas? Deviam tapar tudo ou nada. Porque não ha vidros nem caixilhos, nem postigos? Porque fecha-las de um lado, sem fecha-las de outro? A chuva não entra pelo sul, mas entra pelo norte.

Os credulos não têm razão, e certo; mas os positivos também não a tem. O problema persiste.

O que é certo é que a casa, dizem ter sido mais util que nociva aos contrabandistas.

Quando o medo cresce os factos perdem a verdadeira proporção. Não ha duvida que muitos phenomenos nocturnos, entre aquelles de que a pouco e pouco se compoz o assombramento da casa, poderia explicar-se por presenças fugitivas e obscuras, curtas estações de homens logo embarcados, já pelas precauções, já pela ousadia de certos commerciantes suspeitos, escondendo-se para fazer mal, e deixando-se entrever para causar medo.

Naquella época já remota, muitas audacias eram possiveis. A policia, sobretudo, nos lugares pequenos, não era o que é hoje.

Ajunte-se a isto que se a casa era commoda aos contrabandistas, as suas entrevistas alli deviam ser francas, exactamente porque a casa era mal vista. O ser mal vista impedia que fosse denunciada. Ninguem pede á policia soccorro contra os espectros. Os supersticiosos persignam-se, mas não fazem processos. Vêem ou acreditam vêr, fogem e calam. Existe uma convivencia tacita involuntaria, mas real, entre os que fazem medo e os que tem medo. Os assustados sentem que fizeram mal em se assustarem, imaginam ter sorprehendido um segredo, receiam aggravar a posição mysteriosa para elles, e enfadar as apparições. Isto fal-os discretos. E ainda fóra deste calculo, o instincto dos credulos é o silencio; o medo é mudo; os atterrorisados fallam pouco; parece que o horror diz: silencio!

Devem recordar-se que isto remonta á época em que os camponezes guernesianos acreditavam que o mysterio do presepio era repetido todos os annos pelos bois e pelos asnos; época em que ninguem, na noite de Natal, ousaria penetrar em uma estrebaria com receio de encontrar os animaes ajoelhados.

Se se deve acreditar nas legendas locaes e narrativas dos camponezes a superstição chegou a suspender nas paredes da casa de Plainmont, em pregos de que ainda existem vestigios, ratos sem pés, morcegos sem azas, arcabouços de animaes mortos, sapos esmagados entre as paginas de uma Biblia, febras de tremoços amarellos, estranhos ex-voto pendurados por viandantes imprudentes que acreditavam ver alguma cousa, e por meio desses presente contavam obter perdão e conjurar o máo humor das stryges, das larvas e dos duendes. Houve sempre quem acreditasse em congressos de feitiçaria, e alguns desses credulos altamente collocados. Cesar consultava Sagana, e Napoleão mademoiselle Lenormand. Ha consciencias tão inquietas que chegam a procurar indulgencias de diabo. Faça-o Deos, mas não o desfaça Satanaz, era uma das orações de Carlos V.

Ha espiritos mais timoratos ainda. Esses chegam a persuadir-se de que o mal pode ter razão contra elles. Ser irreprehensivel para com o demonio é uma das suas preoccupações. Dahi vem as praticas religiosas voltadas para a immensa malicia obscura. É uma carolice como qual quer outra. Os crimes contra o demonio existe ein certas imaginações doentias; violar a lei do inimigo é uma cousa que faz soffrer os estranhos casuitas da ignorancia; ha escrupulos para com as regiões das trevas. Crer na efficacia da devoção aos mysterios do Brocken e de Armuyr, imaginar que se pecca contra o inferno recorrendo a penitencias chimericas por infracções chimericas, confessar a verdade ao espirito da mentira, fazer o mea culpa diante do pai da Culpa, confessar-se em sentido inverso, tudo isto existe ou existio. Os processos de magia provam-no em cada uma de suas paginas. Vai até esse ponto o sonho humano. Quando o homem começa a assustar-se não pára mais. Sonha culpas imaginarias, sonha purificações imaginarias, e faz limpar a sua consciencia com a vassoura das feiticeiras.

Fosse como fosse, se aquella casa teve aventuras, é cousa que lá ficou; pondo de parte alguns acasos e algumas excepções, ninguem subio a ver o que era; a casa ficou só; ninguem gosta de arriscar-se aos encontros infernaes.

Graças ao terror que a cerca e affasta dalli todo aquelle que pudesse observar e testemunhar, facil foi em todos os tempos entrar de noite naquella casa por meio de uma escada de corda ou simplesmente por meio da primeira tranqueira que se achasse nas hortas visinhas. Levava-se um rancho de viveres, o que dava lugar a esperar alli com toda a segurança a eventualidade de um embarque furtivo. Conta a tradição que ha 40 annos um fugitivo, dizem uns que da politica, outros que do commercio, lá esteve algum tempo escondido, e dalli embarcou n’um barco de pesca para Inglaterra. De Inglaterra é facil passar á America.

A mesma tradição affirma que as provisões depositadas naquelle albergue lá se conservam sem que ninguem as toque, visto como Lucifer e os contrabandistas têm interesse em que a pessoa que lá as põem, vá buscal-as.

Do lugar em que existe aquella casa, vê-se ao sudueste, a uma milha da costa, o escolho de Hanois.

É celebre aquelle escolho. Fez todas as más acções que um rochedo pode fazer. Era um dos mais temiveis assassinos do mar. Esperava perfidamente os navios á noite. Entulhou os cemiterios de Torteval e de Rocquaine.

Em 1862 pôz-se alli um pharol.

Hoje o escolho de Hanois allumia a navegação que elle proprio extraviava outr’ora; a emboscada traz agora um archote na mão. Procura-se hoje como protector e guia o rochedo do qual fugia-se outr’ora como de um malfeitor. O escolho tranquilisa aquelles vastos espaços nocturnos onde outr’ora inspirava o medo. Assemelha-se a um salteador feito soldado de policia.

Ha tres Hanois: o grande Hanois, o pequeno Hanois e a Mauve. No pequeno Hanois é que existe hoje o Light Red.

O escolho faz parte de um grupo de picos, uns submarinhos, outros acima d’agua. Domina-os. Como se fôra uma fortaleza, tem baterias avançadas; do lado do mar alto, um cordão de treze rochas; ao norte dous cachopos, Hautes-Fourquies e Aiguillons, e um banco d’arêa; Heronée; ao sul tres rochedos, Cat-Rock, Percée e Roque-Herpin; depois a South Boue e a Boue Mouet, e além disso em frente de Plainmont, á flor d’agua o Tas de Pois d’Aval.

Atravessar a nado o estreito de Hanois a Plainmont é cousa incommoda, mas não impossivel. O leitor lembra-se que era essa uma das proezas do Sr. Clubin. O nadador que conhece os baixios tem duas estações em que pode descançar, a Roque redonda, e mais longe obliquando um pouco á esquerda, a Roque vermelha.