IV.


MOSTRAM-SE TODAS AS QUALIDADES DO CAPITÃO CLUBIN.


Voltaram-se todos.

Era o capitão Clubin que interpellava o timoneiro.

O Sr. Clubin não tratava ninguem por tú. Para que elle atirasse a Tangrouille semelhante apostrophe, era preciso que estivesse colerico ou quizesse mostrar-se assim.

Uma expressão de colera, vindo a proposito, demitte a responsabilidade, e algumas vezes deita-a para as costas de outrem.

O capitão, de pé no lugar do commando, entre as caixas, das rodas, olhava fixamente para o timoneiro. Repetio entre dentes: Beberrão! O honesto Tangrouille abaixou a cabeça.

Desenvolvia-se o nevoeiro. Já occupava metade do horisonte. Avançava em todos os sentidos ao mesmo tempo; o nevoeiro parece-se com a gota de óleo. A bruma alargava-se insensivelmente. O vento soprava-a sem pressa e sem rumor. A pouco e pouco ia elle apoderando-se do oceano. Vinha de nordeste e o navio estava com ella pela prôa. Era um vasto penedio movediço e vago. Cortava-se no mar como se fosse uma muralha. Havia um ponto preciso em que a agua immensa entrava por baixo do nevoeiro e desapparecia.

Este ponto de entrada no nevoeiro estava ainda a meia legua de distancia. Se o vento mudasse, podia-se evitar a immersão na bruma; mas era preciso que mudasse logo. A meia legua de intervallo enchia-se e diminuia a olhos vistos; a Durande caminhava, o nevoeiro tambem. O nevoeiro ia para o navio, o navio para o nevoeiro.

Clubin mandou augmentar o vapor e obliquar a leste.

Deste modo costeou-se algum tempo o nevoeiro, mas elle avançava sempre. Todavia o navio continuava a andar em pleno sol.

Perdia-se o tempo naquellas manobras que difficilmente podiam dar bom resultado. Anoitece cedo em Fevereiro.

O guernesiano comtemplava a bruma. Disse aos maloenses:

— É atrevido este nevoeiro.

— Desaceio do mar, observou um dos maloenses.

O outro accrescentou:

— Isto atraza a viagem.

O guernesiano aproximou-se de Clubin.

— Capitão Clubin, receio que sejamos envolvidos pelo nevoeiro.

Clubin respondeu:

— Eu queria ficar em Saint-Malo, mas aconselharam-me que partisse.

— Quem?

— Veteranos do mar.

— Fez bem em partir, continuou o guernesiano. Quem sabe senão haverá tempestade amanhã? Nesta estação espera-se o peior.

Alguns minutos depois a Durande entrava no nevoeiro.

Foi singular esse momento. Toda a gente que estava na pôpa ficou de repente sem ver a gente que ia na prôa. Tenue tabique cinzento cortou o navio ao meio.

Depois todo o navio mergulhou na bruma. O sol parecia uma lua. Subito todos começaram a tiritar. Os passageiros vestiram as capas, e os marinheiros as japonas. O mar, quasi sem uma dobra, tinha a fria ameaça da tranquillidade. Parece que ha conluio neste excesso da calma. Tudo estava pallido e enfiado. O negro cano e a fumaça negra lutavam contra a lividez que cercava o navio.

A derivação a leste já não tinha razão de ser. O capitão aproou de novo sobre Guernesey e augmentou o vapor.

O passageiro guernesiano, andando á roda da machina, ouvio o negro Imbrancam que fallava a um dos companheiros. O passageiro prestou ouvidos. Dizia o negro:

— Quando havia sol iamos devagar; agora que ha nevoeiro, vamos depressa.

O guernesiano foi ter com o Sr. Clubin.

— Capitão Clubin, não ha cuidado; mas não acha que vamos depressa demais?

— Que quer senhor? É preciso ganhar o tempo perdido por culpa daquelle bebado.

— É verdade, capitão Clubin.

E Clubin accrescentou.

— Quero chegar quanto antes. Já basta o nevoeiro; com a noite ficariamos aceiados.

O guernesiano foi ter com os maloenses e disse-lhes:

— Temos um excellente capitão.

De quando em quando ondas grandes de bruma, que pareciam cardadas, passavam e escondiam o sol. Depois o sol reapparecia mais pallido, e como que enfermo. O pouco céo que se via assemelhava-se ás fachas de ar sujas e manchadas de uma velha decoração de theatro.

A Durande passou junto de um cuter que tinha ancorado por prudencia. Era o Shealtiel, de Guernesey. O patrão do cuter notou a rapidez com que ia a Durande. Pareceu-lhe que não estava no caminho exacto; affigurou-se-lhe que obliquava a oeste. Vendo aquelle navio, andando a todo o vapor no meio do novoeiro, o homem pasmou.

Pelas duas horas a bruma era tão espessa, que o capitão foi obrigado a deixar o lugar do costume, e a aproximar-se do timoneiro. O sol desmaiára; tudo era nevoeiro. Havia na Durande uma especie de escuridão branca. Navegava-se na pallidez diffusa. Já se não via nem o céo nem o mar.

Não ventava.

A ancoreta da therebentina suspensa em uma argola ao pé da caixa das rodas já não tinha oscillação.

Os passageiros tornaram-se silenciosos.

Comtudo o parisiense cantarolava entre dentes a canção de Béranger Un jour le bon Dieu s’éveillant.

Um dos maloenses dirigio-lhe a palavra.

— O senhor vem de Paris?

— Sim senhor. II mit la tête à la fenêtre.

— Que se faz por lá?

Leur planète a péri peut-être. Lá em Paris tudo anda mal.

— Então é tanto lá em terra como aqui no mar.

— Realmente, este nevoeiro é o diabo.

— E póde causar desgraças.

O parisiense exclamou:

— Mas, porque desgraças! a proposito de que? de que servem desgraças? É o caso do incendio do Odeon! Ficou uma porção de familias reduzidas á miseria! É justo isto? Olhe cá, eu não sei qual é a sua religião, mas digo-lhe que não estou contente.

— Nem eu, disse o maloense.

— Tudo o que se passa neste mundo, continuou o parisiense, parece um desconcerto. Creio que Deos não entra nisto.

O maloense coçou o alto da cabeça, como quem procura comprehender. O parisiense continuou.

— Deos está ausente. Devia-se lavrar um decreto para obriga-lo a residir aqui. Anda lá na sua casa de campo e não se importa comnosco. E tudo vai torto e mal encaminhado. É evidente, meu bom senhor, que Deos já não está no governo, está em ferias, e é o vigario, algum anjo seminarista, algum bocio com azas de pardal, quem dirige os negocios.

O capitão Clubin, que se aproximara, pôz a mão no hombro do parisiense.

— Silencio, disse elle. Cuidado nas palavras. Estamos no mar.

Ninguem mais fallou.

No fim de cinco minutos, o guernesiano, que tudo ouvira, murmurou aos ouvintes.

— É um capitão religioso.

Não chovia e todos estavam molhados. Só se reparava no caminho que o navio descrevia por uma especie de máo-estar. Parecia que se entrava na tristeza. O nevoeiro emmudece o oceano, adormenta a vaga e supita o vento. Naquelle silencio, o rumor da Durande tinha um não sei que de inquieto e lamentoso.

Já se não encontravem navios. Só ao longe, quer do lado de Guernesey, quer do lado de Saint-Malo, alguns navios estavam no mar, fóra do nevoeiro; para esses a Durande, submergida na bruma, não era visivel, e a sua longa fumaça, presa a cousa nenhuma, parecia-lhes um cometa negro no céo branco.

De repente Clubin exclamou:

— Com seiscentos! estás dirigindo mal. Olha que me avarias o barco! Mereces bem que te ponha a ferros. Vai-te, bebado!

E tomou a canna do leme.

O timoneiro humilhado refugiou-se na cordoalha da prôa.

Disse o guernesiano:

— Estamos salvos.

A marcha continuou rapida.

Pelas tres horas, a orla inferior do nevoeiro começou a levantar-se e vio-se o mar.

— Máo! disse o guernesiano.

Só o sol ou o vento deve levantar a bruma. Quando é o sol é bom signal; quando é o vento, não é tão bom signal. Era tarde já para ser o sol. Ás tres horas, em Fevereiro, o sol está fraco. Não era cousa desejavel a volta do vento naquella situação critica. Muitas vezes annuncia o furacão.

Verdade seja, que, se havia brisa, mal se sentia.

Clubin, com o olhar na bitacula, governando o leme, mastigava algumas palavras que chegavam aos passageiros; era isto mais ou menos:

— Não ha tempo a perder. Aquelle bebado demorou a viagem.

O seu rosto, porém, não tinha expressão alguma.

O mar estava menos adormecido. Já se enxergavam algumas vagas. Luzes geladas fluctuavam na agua. Essas placas de clarão nas ondas preocupam os marinheiros. Indicam que o vento faz buracos por cima do nevoeiro. A bruma levantava-se e tornava a cahir mais densa. As vezes a opacidade era completa. O navio estava numa verdadeira montanha de nevoeiro. De quando em quando aquelle circulo tremendo abria-se como uma tenaz, deixava ver o horisonte, e fechava-se depois.

O guernesiano, armado de um oculo, estava como uma vedeta, na frente do navio.

Clareou, depois escureceu outra vez.

O guernesiano voltou-se assustado:

— Capitão Clubin!

— Que é?

— Vamos direito aos cachopos de Hanois.

— É engano, disse Clubin friamente.

O guernesiano insistio:

— Estou certo.

— Impossivel.

— Vi uma pedra no horisonte.

— Onde?

— Alli?

— É ao largo. Impossivel.

E Clubin continuou a pôr o navio no ponto indicado pelo passageiro.

O guernesiano travou do oculo.

Minutos depois correu para o capitão.

— Capitão!

— Que é?

— Vire de bordo.

— Por que?

— Vi uma rocha muito alta e muito perto. É o grande Hanois.

— Ha de ser algum nevoeiro mais escuro.

— É o grande Hanois. Vire de bordo, em nome do céo!

Clubin deu uma volta á canna do leme.