Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro II/V

V.


SUB UMBRA.


Ás vezes, alta noite, Gilliatt abria os olhos e olhava para a sombra.

Sentia-se extremamente commovido.

Olhar aberto sobre trevas. Situação lugubre: anciedade.

Existe a pressão da sombra.

Inexprimivel tecto de tenebras; alta obscuridade sem mergulhador possivel; luz mesclada á obscuridade, mas uma luz vencida e sombria; claridade reduzida a pó; é semente? é cinza? milhões de fachos, claridade nulla; vasta ignição que não diz o seu segredo, uma diffusão de fogo em poeira que parece um bando de faiscas paradas, a desordem do turbilhão e a immobilidade do sepulchro, o problema offerecendo uma abertura de precipicio, o enigma desvendando e escondendo a sua face, o infinito mascarado com a escuridão, eis a noite. Pesa no homem esta superposição.

Esse amalgama de todos os mysterios a um tempo, do mysterio cosmico e do mysterio fatal, abate a cabeça humana.

A pressão da sombra actúa em sentido inverso nas differentes especies de almas. O homem diante da noite reconhece-se incompleto. Vê a obscuridade e sente a enfermidade. O céo negro é o homem cégo. Entretanto com a noite, o homem abate-se, ajoelha-se, prostorna-se, roja-se, arrasta-se para um buraco, ou procura azas. Quasi sempre quer fugir a essa presença informe do desconhecido. Pergunta o que é; treme, curva-se, ignora; ás vezes quer ir lá.

Aonde?

Lá.

Lá? O que é? Que ha lá?

Essa curiosidade é evidentemente a das cousas defezas, porque para aquelle lado todas as pontes á roda do homem estão cortadas. Mas o desejo attrahe, porque é golphão. Onde não vae o pé, vae o olhar, onde o olhar pára, póde continuar o espirito. Não ha homem qne não tente, por mais fraco e insufficiente que seja. O homem, segundo a sua natureza, investiga ou espera diante da noite. Para uns é um rechaçamento, para outros é uma dilatação. O espectaculo é sombrio. Mescla-se a elle o indefinivel.

Vai a noite serena? É um fundo de sombra. Vai tempestuosa? É um fundo de fumaça. O illimitado recusa-se e offerece-se ao mesmo tempo, fechado à experiencia, aberto á conjectura. Infinitas picadas de luz tornam mais negra a obscuridade sem fundo. Carbunculos, scintillações, astros. Presenças verificadas no Ignorado; tremendos reptos para ir tocar esses clarões. São estacas da creação no absoluto; são marcos de distancia lá onde já não ha distancia; é uma especie de numeração impossivel, e todavia real, do canal das profundezas. Um ponto microscopico que fulge, depois outro, mais outro, mais outro; é o imperceptivel, é o enorme. Essa luz é um fóco, esse fóco é uma estrella, essa estrella é um sol, esse sol é um universo, esse universo é nada. Todo o numero é zero diante do infinito.

Esses universos, que nada são, existem. Verificando-os, sente-se a diferença que vai entre ser nada, e não ser.

O inaccessivel ligado ao inexplicavel, eis o céo.

Dessa contemplação solta-se um phenomeno sublime: o crescimento da alma pelo assombro. O medo sagrado é proprio do homem; a besta ignora esse medo. A intelligencia acha nesse terror augusto o seu eclipse e a sua prova.

A sombra é una: vem dahi o seu horror, É ao mesmo tempo complexa: vem dahi o terror. A sua unidade pesa no nosso espirito e sacca-lhe a vontade de resistir.

A complexidade faz com que se olhe para todos os lados; parece que se devem receiar assaltos subitos. O homem rende-se, e defende-se, Fica em presença de Tudo, dahi vem a submissão, e de Muitos, dahi vem a desconfiança. A unidade da sombra contém um multiplo. Multiplo mysterioso, visivel na materia, sensivel no pensamento. Faz silencio, razão de mais para espreitar.

A noite, — já o disse algures quem escreve estas linhas, — é o estado proprio, normal da creação especial de que fazemos parte. O dia, breve na duração como no espaço, é apenas uma proximidade de estrella.

O prodigio nocturno universal não se realiza sem attritos, e os attritos de uma tal machina são as contusões da vida. Os attritos da machina, é o que chamamos o Mal. Sentimos nessa obscuridade o mal, desmentido latente da ordem divina, blasphemia implicita do facto rebelde ao ideal. O mal accrescenta uma teratologia de mil cabeças ao vasto conjunto cosmico. O mal está presente em tudo para protestar. É furacão, e atormenta a marcha de um navio, é cahos e entrava o desabrochar de um mundo. O Bem tem a unidade, o Mal tem a ubiquidade. O mal desconcerta a vida, que é uma logica. Faz devorar a mosca pelo passaro, e o planeta pelo cometa. O mal é um borrão na natureza.

A obscuridade nocturna peja-se de uma vertigem. Quem a aprofunda, submerge-se e debate-se. Não ha fadiga comparavel a esse exame de trevas. É o estudo de um apagamento.

Não ha lugar definitivo para pousar o espirito. Pontos de partida sem ponto de chegada. O cruzamento das soluções contradictorias, todos os ramos da duvida a um tempo, a ramificação dos phenomenos esfoliando-se sem limite sob uma impulsão indefinida, mistura de todas as leis, uma promiscuidade insondavel que faz com que a mineralisação vegete, com que a vegetação viva, com que o pensamento pese, com que o amor irradie, e a gravitação ame; a immensa fronte de ataque de todas as questões desenvolvendo-se na obscuridade sem limites; o entrevisto esboçando o ignorado; a simultaneidade cosmica em plena apparição, não para o olhar, mas para a intelligencia, no espaço indistincto; o invisivel tornado visão. É a Sombra. O homem está embaixo. Não conhece os pormenores, mas supporta, em qualidade proporcionada ao seu espirito, o peso monstruoso do conjunto. Esta obsessão impelia os pastores chaldeus á astronomia. Sahem dos poros da creação revelações involuntarias; faz-se por si mesma uma transudação de sciencia e invade o ignorante. Debaixo dessa impregnação mysteriosa torna-se o solitario, muitas vezes sem ter consciencia, um philosopho natural.

A obscuridade é indivisivel. É habitada. Habitada sem deslocação pelo absoluto; habitada tambem com deslocação. Move-se alli dentro alguma cousa, o que é para assustar. Uma formação sagrada desenvolve alli as suas phazes. Premeditações, potencias, destinos intencionaes, laboram ahi em commum uma obra desmedida. Vida terrivel e horrivel é o que existe alli dentro. Ha vastas evoluções de astros, a familia stellaria, a familia platenaria, o pollen Zodiacal, o Quid divinum das correntes, dos effluvios, das polarisações e das alterações; ha o amplexo e o antagonismo, um magnifico flux e reflux da antithese universal, o imponderavel em liberdade no meio dos centros; ha a seiva nos globos, a luz fora dos globos, o atomo errante, o germen esparso, curvas de fecundação, encontros de ajuntamento e de combate, profusões inauditas, distancias que parecem sonhos, circulações vertiginosas, mergulhos de mundos no incalculavel, prodigios perseguindo-se nas trevas, um machinismo definitivo, sopro de espheras em fuga, rodas que se sente andarem; existe e esconde-se; é inexpugnavel, fora de alcance. Fica-se convencido até á oppressão. Tem-se em si uma evidencia negra. Nada se póde agarrar. Esmaga-nos o impalpavel.

Por toda a parte o incomprehensivel: em parte alguma o intelligivel.

E a tudo isto accrescentai a terrivel questão: esta Immanencia é um Ser?

Está-se debaixo da sombra. Olha-se. Escuta-se.

Entretanto a terra sombria caminha e rola, as flôres tem consciencia desse movimento enorme; a silena abre-se ás onze horas da noite e a emerocala ás cinco horas da manhã. Impressivel regularidade.

Em outros profundidades a gotta d’agua faz-se mundo, o infusorio pulula, a fecundidade gigante sahe do animaculo, o imperceptivel ostenta a sua grandeza, o sentido inverso da immensidade manifesta-se; uma diatoméa produz em uma hora um milhar e trezentos milhões de diatoméas.

Que proposição de todos os enigmas ao mesmo tempo!

Está ahi o irreductivel.

Constrange-se-nos á fé. Crer por força, eis o resultado. Mas para estar tranquillo não basta ter fé. A fé tem uma estranha necessidade de fórma. Dahi vem as religiões. Nada é tão oppressivo como uma crença sem delineamento.

Qualquer que seja o pensamento e a vontade, qualquer que seja a resistencia interior, olhar a sombra, não é olhar, é contemplar.

Que fazer desses phenomenos? Como mover-se debaixo de sua convergencia? É impossivel decompôr esta pressão. Que devaneio se deve ajuntar a todos esses confinantes mysteriosos? Quantas revelações abstrusas, simultaneas, obscurecendo-se em sua propria multidão, especie de balbuciar do verbo! A sombra é um silencio: mas esse silencio diz tudo. Surge magestosamente um resultado: Deos. Deos é a noção incomprehensivel. Essa noção está no homem. Os syllogismos, as querellas, as negações, os systemas, as religiões, passam por cima sem diminuil-a. A sombra inteira affirma aquella noção. Mas turva-se tudo o mais. Immanencia formidavel. A inexprimivel harmonia das forças manifesta-se pelo equilibrio dessa obscuridade. O universo pende; nada tomba. O deslocamento incessante e desmedido opera-se sem accidente e sem fractura. O homem participa deste movimento de translação e á quantidade de oscilação que supporta, chama elle destino. Onde começa o destino? Onde acaba a natureza? Que differença ha entre um acontecimento e uma estação, entre um pezar e uma chuva, entre uma virtude e uma estrella? Uma hora não é uma onda? Continúa o movimento da roda, sem responder ao homem, em sua revolução impassivel. O céo estrellado é uma visão de rodas, de pendulas e de contra pesos. É a contemplação suprema, forrada da suprema meditação. É toda a realidade e mais a abstracção. Nada além dahi. O homem sente-se preso. Fica á discrição da sombra. Não ha evasão possivel. Vê-se elle naquelle composto de rodas, é parte integrante de um Todo ignorado, sente o desconhecido que está fora delle. Isto é o annuncio sublime da morte. Que angustia e ao mesmo tempo que fascinação! Adherir ao infinito, e por essa adherencia attribuir-se uma immortalidade necessaria, quem sabe? uma eternidade possivel, sentir na prodigiosa vaga desse silencio universal a obstinação insubmersivel do eu! contemplar os astros, e dizer: Sou uma alma como vós! contemplar a obscuridade e dizer: sou um abysmo com tú.

Essas enormidades são a noite.

Tudo isso augmentado, pela solidão, pesava em Gilliatt.

Comprehendia-o elle? Não. Sentia-o? Sim.

Gilliatt era um grande espirito turvado e um grande coração selvagem.