Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro II/VII

VII.


SURGE UM PERIGO.


Havia pouca brisa, mais vinha do oeste. É um máo costume de vento no equinoxio.

A maré enchente, conforme o vento que sopra, comporta-se diversamente no escolho Douvres. Conforme o vento, a onda entra naquelle corredor ou por leste ou por oeste. Se o mar entra por leste a agua é boa e molle, se entra por oeste é furiosa. A razão disto é que o vento de leste, vindo de terra tem pouco alento, emquanto que o vento de oeste, que atravessa o Atlantico, traz comsigo todo o sopro da immensidade. Mesmo quando a brisa é fraca assusta quando vem do oeste. Róla largas ondas da extençáo illimitada e cospe grossas vagas no estreito.

A agua que se engolpha é sempre terrivel. A agua é como a multidão; uma multidão é um liquido; quando a quantidade que póde entrar é menor que a quantidade que deseja entrar, a multidão machuca-se e a agua convulsiona-se. Emquanto sopra o vento do poente, ainda a mais fraca brisa, ha nas Douvres este assalto, duas vezes por dia. A maré levanta-se, a rocha resiste, a abertura é pequena, a onda entrando á força salta e ruge, e um marulho enraivecido bate as duas fachadas internas da viéla. De modo que as Douvres ao menor vento do oeste, offerecem este espectaculo singular: no mar, calma, no escolho, tempestade. Esse tumulto local e circumscripto, não é uma tormenta; é apenas uma revolta de vagas, mas terrivel. Quanto aos ventos do norte e do sul, esses fazem pouca ressaca na garganta do escolho. A entrada por leste, é preciso lembra-lo, confina com o rochedo Homem; a abertura temivel do oeste fica na extremidade opposta exactamente entre as duas Douvres.

Nessa abertura de oeste é que se achava Gilliatt com a Durande naufragada e a pança ancorada.

Parecia inevitavel uma catastrophe, esta catastrophe imminente, tinha, embora pouco, o vento de que precisava.

Dentro de poucas horas o inchamento do mar que subia, ia naturalmente entrar em grande luta no estreito das Douvres. As primeiras vagas já começavam a rugir. Inchamento esse, refluxo impetuoso de todo o Atlantico que teria atraz de si a totalidade do mar. Nenhuma borrasca, nenhuma cólera; mas uma simples onda soberana, contendo em si uma força de impulsão que, partindo da America para chegar á Europa, tinha duas mil leguas de jacto. Essa onda, barra gigantesca do oceano, encontraria o hiate do escolho, e, apertada nas duas Douvres, torres de entrada, pilares do estreito, inchada pela maré, inchada pelo obstaculo, repellida pelo rochedo, castigada pelo vento, faria violencia ao escolho, penetraria, com todos os torções do obstaculo encontrado, e todos os frenesis da vaga entravada, entre as duas muralhas, encontraria a pança e a Durande, e as estrangularia.

Era preciso um broquel contra essa eventualidade. Gilliatt tinha-o.

Cumpria impedir que a maré entrasse toda, impedir que esbarrasse embora enchesse, tapar-lhe a passagem sem recusar-lhe a entrada, resistir-lhe e ceder-lhe, previnir a compressão da onda na boca do rochedo, que era o perigo, substituir a irrupção pela introducção, conter a raiva e a brutalidade da vaga, obrigar aquella furia a ser tranquilla. Era preciso substituir ao obstaculo que irrita, o obstaculo que applaca.

Gilliatt, com a destreza que tinha, mais forte que a força, executando uma manobra de camello na montanha ou de macaco na floresta, utilisando com saltos oscilantes e vertiginosos a menor saliencia de pedra, pulando na agua, nadando nos rodomoinhos, trepando ao rochedo, com uma corda nos dentes, um martello na mão, desatou o cabo que prendia á pequena Douvre o pedaço da amurada de prôa da Durande, fez com as pontas da maroma uma especie de gonzos prendendo aquelle pedaço de madeira aos grandes pregos mettidos no granito, fez voltar naquelles gonzos aquella armadura de taboas semelhante ao alçapão de um dique, expôl-o em flanco, como se faz com um leme, á onda que impellia, e applicou essa extremidade á grande Douvre, emquanto os gonzos de cordas retinham na pequena Douvre a outra extremidade; operou na grande Douvre, por meio de prégos, postos do antemão, a mesma fixação que na pequena, amarrou solidamente essa vasta placa de madeira ao duplo pilar da abertura, travou nessa barra uma corrente como um talabarte n’uma couraça, e em menos de uma hora, levantou-se o obstaculo contra a maré, e a viella do escolho ficou fechada como por uma porta.

Este robusto tapamento, pesada massa de pranchas, que deitado seria uma jangada, e de pé era uma parede, foi, com auxilio da vaga, trabalhado por Gilliatt com uma agilidade de saltimbanco. Podia-se dizer quasi que a cousa foi feita antes que o mar se apercebesse disso.

Era um desses casos em que Jean Bart dizia o famoso dito que elle dirigia á vaga do mar, cada vez que esquivava um naufragio: Apanhei-te, inglez! Sabe-se que Jean Bart quando queria insultar o oceano chamava-o inglez.

Tapado o estreito, Gilliatt cuidou da pança. Dividio o cabo nas duas ancoras para que ella podesse subir com a maré. Operação analoga a que os antigos maritimos chamavam: mouiller avec des embossures.

Em tudo isto Gilliatt não foi sorprehendido, o caso estava previsto; um homem do officio reconhecel-o-hia vendo as duas roldanas de guindar mettidas por traz da pança, nas quaes passavam dous pequenos cabos cujas pontas estavam presas ás argolas das duas ancoras.

Entretanto crescia a maré; já subira metade; é nesse momento que os choques das ondas, mesmo placidos, podem ser rudes. O que Gilliatt combinára realisou-se. A onda rolava violentamente para a porta, encontrava-a, inchava epassava por cima. Fóra era o marulho. Dentro a infiltração. Gilliatt imaginou alguma cousa semelhante ás forcas caudinas do mar. A maré estava vencida.