Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro II/XI

XI.


PARA UM BOM ENTENDEDOR, MEIA PALAVRA BASTA.


Pareceu-lhe ouvir, immensamente longe, um quê fraco e indistincto.

As profundezas, em certas horas, tem um certo rugido.

Gilliatt attentou pela segunda vez. O rumor longiquo recomeçou. Gilliatt sacudio a cabeia como quem sabia o que era.

Momentos depois, estava elle na outra extremidade da viella do escolho, na entrada de leste, livre até alli, e com grandes martelladas, metteu grossos prégos no granito dos portaes daquella abertura visinha do rochedo Homem.

Os buracos desses rochedos estavam preparados e guarnecidos de cavilhas de madeira, quasi tudo carvalho. O escolho desse lado estava escalavrado, tinha muitas fendas, e Gilliatt pôde metter ahi mais pregos ainda que no esvasamento das Douvres.

N’um momento dado, e como se lhe soprassem de cima, a phosphorescencia apagou-se; o crepusculo, cada vez mais luminoso, substituia-a.

Mettidos os pregos, Gilliatt arrastou umas pranchas, depois cordas, depois correntes, e sem desviar os olhos do trabalho, sem se distrahir um momento, começou a construir na abertura do Homem, com taboas fixadas horisontalmente e presas por cabos, um desses tapamentos de claraboia, que a sciencia já adoptou, e qualifica de quebra-mar.

Os que viram, por exemplo, na Rocquaine em Guernesey, ou no Boury-d’eau em França, o effeito que fazem algumas estacas pregadas no rochedo, comprehendem a força desses trabalhos simplices. O quebra-mar é a combinação daquillo que em França se chama epi, e daquillo que na Inglaterra se chama dick. O quebra-mar são os cavallos de frisa das fortificações contra as tempestades. Não se póde lutar contra o mar senão aproveitando a divisibilidade dessa força.

Entretanto levantara-se o sol, perfeitamente puro. O dia estava claro, o mar calmo.

Gilliatt apressava o trabalho. Tambem elle estava calmo, mas na sua pressa havia anciedade.

Passava, em grandes pulos de rocha em rocha, do tapamento ao deposito e do deposito ao tapamento. Voltava puxando apressadamente, ora um gancho, ora um cabo. Manifestou-se então a necessidade daquelle deposito de destroços. Era evidente que Gilliatt estava diante de uma eventualidade prevista.

Uma forte barra de ferro servia-lhe de alavanca para mover os barrotes.

O trabalho executava-se tão depressa que mais parecia um crescimento que uma construcção. Quem não vio trabalhar um postageiro militar não póde fazer idéa daquella rapidez.

A abertura de leste era ainda mais estreita que a de oeste. Tinha apenas cinco ou seis pés de largura. A estreiteza ajudava Gilliatt. Sendo estreito o espaço que tinha de fortificar e fechar, a armadura seria mais solida e podia ser mais simples. Bastavam pois vigas horisontaes; as peças verticaes eram inuteis.

Postos os primeiros travessões do quebra-mar, Gilliatt trepou em cima e escutou.

O rugido tornava-se expressivo.

Gilliatt continuou a construcção. Accrescentou-lhe dous cepos da Durande ligados ás pontas das vigas com adrissas passadas nas tres rodas das polés. Ligou tudo com correntes.

Essa construcção era nada menos que uma especie de grade collossal; as pranchas eram as tenazes e as correntes eram os vimes.

Parecia entrançado como parecia construido.

Gilliatt multiplicou os laços e pôz mais prégos onde era preciso.

Tendo muito ferro redondo na Durande, pôde fazer uma grande provisão desses pregos.

Ao mesmo tempo que trabalhava ia mastigando biscouto. Tinha sede, mas não podia beber, por já não ter agua doce. Esgotára o pichel na noite anterior.

Accrescentou ainda quatro ou cinco taboas, depois trepou em cima de tudo. Escutou.

Cessou o rumor ao longe e calava-se tudo.

O mar estava manso e soberbo; merecia todos os madrigaes que lhe dirigem os burguezes quando estão contentes com elle, — um espelho, — um mar de rosas, — um tanque, — um mar de leite. — O azul profundo do céo correspondia ao verde profundo do oceano. Aquella saphira e aquella esmeralda podiam admirar-se ambas. Não tinham de que exprobrar-se. Nenhuma nuvem em cima, nenhuma espuma em baixo. No meio desse esplendor subia magnificamente o sol de Abril. Era impossivel ver mais bello dia.

No extremo horisonte uma fila negra de aves de arribação atravessava o céo. Iam depressa. Dirigiam-se para a terra. Parecia uma fuga.

Gilliatt continuou a levantar o quebra-mar.

Levantou-o o mais que pôde, tão alto como lhe permittio a curvatura dos rochedos.

Ao meio-dia o sol pareceu-lhe mais quente do que devia estar. Meio-dia é a hora critica do dia. Gilliatt, de pé na robusta clara-boia que acabava de construir, entrou a contemplar a extensão.

O mar estava mais que tranquillo, estava estagnado. Não se via uma vela. O céo estava limpido; somente o azul tornara-se mais branco. Era um branco singular. No horisonte, a oeste, havia uma manchasinha de apparencia ruim. Essa mancha estava immovel, mas crescia. Junto dos cachopos o mar palpitava brandamente.

Gilliatt fizera bem em construir o quebra-mar.

Approximava-se uma tempestade.

O abysmo resolvera dar batalha.



FIM DO 2° VOLUME.