Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro IV/III

III.


OUTRA FORMA DE COMBATE NO ABYSMO.


Tal era o animal a quem, desde alguns instantes, Gilliatt pertencia.

Aquelle monstro era o habitante daquella grota. Era o medonho genio do lugar. Especie de sombrio demonio da agua.

Todas essas magnificencias tinham por centro o horror.

Um mez antes, no dia em que pela primeira vez Gilliatt penetrou na caverna, a fórma escura, entrevista por este nas dobras da agua secreta, era aquella pieuvre.

Estava ella em sua casa.

Quando Gilliatt entrando pela segunda vez na caverna, em busca do carangueijo, vio o buraco onde pensou que o carangueijo se tivesse refugiado, a pieuvre estava no seu buraco á espreita.

Póde-se imaginar esta espera?

Nenhum passaro ousaria chocar, nenhum ovo ousaria abrir, nenhuma flôr ousaria desabrochar, nenhum seio ousaria aleitar, nenhum coração ousaria amar, nenhum espirito ousaria voar, se se pensasse nas sinistras emboscadas do abysmo.

Gilliatt mettêra o braço no buraco; a pieuvre agarrou-o.

Gilliatt estava preso.

Era a mosca daquella aranha.

Gilliatt tinha agua até á cintura, os pés agarrados nos seixos arredondados e resvaladiços, com o braço direito atado pelas corrêas da pieuvre, e o tronco do corpo desapparecendo quasi debaixo das dobras e crusamentos daquella atadura horrivel.

Dos oito braços da pieuvre, tres adheriam á rocha, cinco adheriam a Gilliatt. Deste modo agarrados ao granito por um lado e ao homem pelo outro, encadeava Gilliatt ao rochedo. Gilliatt tinha em si duzentos e cincoenta chupadores. Complicação de angustia e de enjôo. Estava apertado dentro de uma grande mão, cujos dedos elasticos e do comprimento de um metro, são inteiramente cheios de pustulas vivas que lhe foçavam na carne.

Já o dissemos, não se pode arrancar a pieuvre. Quem o tenta, fica mais fortemente amarrado. Ella aperta-se mais. O seu esforço cresce na razão do esforço do homem. Quanto maior é a sacudidella, maior é a constricção.

Gilliatt só tinha um recurso, a faca.

Tinha a mão esquerda livre; é sabido que elle usava della poderosamente. Podia dizer-se que tinha duas mãos direitas.

Nessa mão, tinha elle a faca aberta.

Não se cortam as antennas da pieuvre; é um couro impossivel de cortar, resvala debaixo da lamina; demais a superposição é tal que um córte nessas corrêas iria até á carne.

O polvo é formidavel, ha comtudo uma maneira de vencê-lo. Os pescadores de Serk o sabem; quem os vio executar no mar certos movimentos bruscos, tambem o sabe. Os ouriços do mar tambem conhecem esse modo; têm uma maneira de morder a siba que lhe córta a cabeça. Dahi vem que se encontram muitas sibas e pieuvres sem cabeça no mar alto.

O polvo, na verdade, só é vulneravel na cabeça.

Gilliatt não o ignorava.

Nunca tinha visto uma pieuvre daquelle tamanho. Logo da primeira vez, achava-se agarrado pela grande especie. Qualquer outro ter-se-hia perturbado.

Ha um momento para vencer a pieuvre, como o touro; é o instante em que o touro curva o pescoço, é o instante em que a pieuvre estica a cabeça; instante rapido. Quem o deixa escapar está perdido.

Tudo o que acabamos de dizer passou-se em alguns minutos. Gilliatt sentia crescer a sucção das duzentas e cincoenta ventosas.

A pieuvre é traidora. Procura apavorar a presa. Agarra, e espera o mais que póde.

Gilliatt tinha a faca na mão. As sucções augmentavam.

Elle olhava para a pieuvre, a pieuvre olhava para elle.

De repente o bicho desprendeu do rochedo a sexta antenna e atirando-a sobre Gilliatt procurou agarra-lhe o braço esquerdo.

Ao mesmo tempo esticou vivamente a cabeça. Mais um segundo, e a sua boca applicar-se-hia sobre o peito de Gilliatt. Gilliatt sangrado no corpo e preso pelos braços, estava morto.

Mas Gilliatt vigiava. Espreitado, espreitava.

Evitou a antenna, e no momento em que o bicho ia agarrar-lhe o peito, a sua mão armada abateu-se sobre o bicho.

Houve duas convulsões em sentido inverso, a da pieuvre e a de Gilliatt.

Foi luta de dous relampagos.

Gilliatt mergulhou a ponta da faca na viscosidade chata e com um movimento giratorio semelhante á torção de uma chicotada, fazendo um circulo á roda dos dous olhos arrancou a cabeça como quem arranca um dente.

Estava acabado.

O bicho cahio.

Parecia uma roupa que se desprende. Destruida a bomba aspirante, desfez-se o vacuo. As quatrocentas ventosas largaram ao mesmo tempo o rochedo e o homem. Aquelle andrajo foi ao fundo d’agua.

Gilliatt, offegante da luta, pôde vêr a seus pés em cima das pedras do fundo dous montes gelatinosos e informes, a cabeça de um lado, o resto de outro. Dizemos resto, porque não se poderia dizer corpo.

Gilliatt, com tudo, receiando algum ataque convulsivo da agonia collocou-se fóra do alcance dos tentaculos.

Mas o animal estava bem morto. Gilliatt fechou a faca.