Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro IV/VII

VII.


HA UM OUVIDO NO IGNOTO.


Correram algumas horas.

O sol levantava-se deslumbrante.

O seu primeiro raio illuminou na plataforma da grande Douvre, uma forma immovel. Era Gilliatt. Continuava estendido em cima do rochedo.

Já não estremecia aquella nudez gelada e endurecida. Estavam lividas as palpebras fechadas. Era difficil dizer que não era um cadaver.

O sol parecia contempla-lo.

Se aquelle homem nú não estava morto, devia estar tão perto disso que bastaria o menor vento frio para acaba-lo.

Começou a soprar o vento, tepido e vivificante; era o halito vernal de Maio.

Entretanto o sol subia no profundo céo azul; o seu raio menos horisontal ia-se purpureando. A luz fez-se calor. Cingio Gilliatt.

Gilliatt não se mexia. Se respirava, era uma respiração quasi extincta que mal poderia embaciar um espelho.

O sol continuava a sua ascenção cada vez menos obliqua sobre Gilliatt. O vento que era tepido ao principio, tornou-se callido.

Aquelle corpo rigido e nú continuava sem movimento; entretanto a pelle parecia menos livida.

O sol, acercando-se do zenith, cahia a prumo sobre a plataforma da Douvre. Vertia do alto do céo uma prodigalidade de luz; juntava-se a ella a vasta reverberação do mar tranquillo, o rochedo começava a ficar tepido e aquecia o homem.

O peito de Gilliatt levantou-se com um suspiro.

Vivia.

O sol continuava as suas caricias, quasi ardentes. O vento, que já era o vento do meio dia, e o vento de verão, approximava-se de Gilliatt como uma boca, soprando mollemente.

Gilliatt fez um movimento.

Era inexprimivel a tranquillidade do mar, tinha um murmurio de ama ao pé do filho. As vagas pareciam embalar o escolho.

As aves marinhas que conheciam Gilliatt, voavam inquietas por sobre elle. Já não era o medo selvagem do principio. Era um quê de terno e fraternal. Soltavam pequenos guinchos. Pareciam chamal-o. Uma gaivota que o amava sem duvida, teve a familiaridade de descer para junto delle. Começou a fallar-lhe. Elle não parecia ouvil-a.

Ella saltou-lhe sobre o hombro e começou a brincar docemente com o bico nos seus labios.

Gilliatt abrio os olhos.

Os passaros, alegres e ariscos, voaram.

Gilliatt levantou-se e espreguiçou-se como o leão acordando, correu á bordo da plataforma e olhou para o intervallo das Douvres.

A pança estava intacta. O batoque resistira; provavelmente o mar maltratara-o pouco.

Tudo estava salvo.

Gilliatt já não estava cansado. Refizeram-se-lhe as forças. O desmaio foi um somno.

Esvasiou a pança, poz a avaria fora da fluctuação, vestio-se, bebeu, comeu, tornou-se alegre.

O buraco examinado de dia demandava mais trabalho de que Gilliatt pensou. Era uma grande avaria. Gilliatt gastou o dia inteiro em reparal-o.

No dia seguinte, de madrugada, depois de desfazer a tapagem e abrir a sahida do estreito, vestido com os andrajos que tinham vencido a avaria, tendo comsigo o cinto de Clubin e os setenta e cinco mil francos, em pé na pança concertada, ao lado da machina salva, com um vento de feição e mar admiravel, Gilliatt sahia do escolho Douvres.

Aproou sobre Guernesey.

No momento em que se a affastava do escolho, alguem que lá estivesse tel-o-hia ouvido entoar a meia voz a canção Bonny Dundee.


FIM DA SEGUNDA PARTE