Os Trabalhadores do Mar/Parte III/Livro II/I
I.
ALEGRIA CERCADA DE ANGUSTIAS.
Mess Lethierry agitava o sino com soffreguidão. De subito parou. Vio um homem voltar a esquina do cáes. Era Gilliatt.
Mess Lethierry correu a elle, ou para melhor dizer atirou-se a elle, tomou-lhe a mão entre as suas, e olhou-o fitamente em silencio; um desses silencios da explosão, não sabendo por onde irromper.
Depois com violencia, saccudindo, e puxando, e apertando-o nos braços, fez entrar Gilliatt na sala baixa de Bravées, empurrou a porta com o tacão, e ficou entre-aberta, assentou-se ou cahio, em uma cadeira ao lado de uma grande mesa illuminada pela lua, cujo reflexo eubranquecia vagamente o rosto do Gilliatt, e com uma voz onde haviam gargalhadas e soluços misturados, gritou:
— Ah! meu filho! homem do bug-pipe! Gilliatt! eu bem sabia que eras tu! A pança! que diabo! conta-me isso! Pois foste! Ha cem annos queimavam-te. É feitiçaria. Não falta nada. Já examinei, reconheci, apalpei. Adevinho que as rodas estão nas duas caixas. Então chegaste! Fui procurar-te na pança. Toquei o sino. Procurava-te. Eu dizia comigo: onde está elle? Quero devoral-o. É preciso convir que se passam cousas extraordinarias. Aquelle animal volta do escolho Douvres. Traz-me a vida. Com os diabos! tu és um anjo. Sim, sim, sim, é a minha machina. Ninguem acredita. Hão de vêl-a e dizer: Não falta nem uma serpentina. O tubo d’agua não se deslocou. É incrivel que não houvesse avaria. Falta só pôr um pouco de azeite. Mas como foi? E a Durande vai agora navegar! A arvore das rodas está desmontada como se fosse feito por um ourives. Dá-me a tua palavra de honra que eu não estou doudo.
Levantou-se, respirou e proseguio:
— Jura-me. Que revolução! Dou beliscões em mim mesmo, vejo que não sonho. Tu és meu filho, és meu rapaz, és Deos. Ah! meu filho. Ir buscar a minha pobre machina! No mar alto! Naquella emboscada do escolho! Tenho visto muita cousa espantosa em minha vida. Nunca vi cousa assim. Vi os parisienses que são uns satanazes. Boas! não faziam isto. É peior que a Bastilha. Vi os gaúchos lavrar nas pampas, tendo por charrua um galho de arvore, do comprimento de um covado, e por grade um feixe de espinhos puxado por corda de couro; colhem com isto grãos de trigo do tamanho de avelãs. Não valem dous caracoes ao pé de ti. Fizeste um milagre, um verdadeiro milagre. Ah! tratante! Salta-me ao pescoço. Como vai rosnar a gente de Saint-Sampson! Vou tratar já e já de fazer o navio. E, admiravel não ter quebrado a vara da redouça. Meus senhores, elle foi ás Douvres. As Douvres! um penedo que não tem rival. Já sabes, está provado que a cousa foi feita de proposito. Clubin perdeu a Durande para furtar-me o dinheiro que devia trazer-me. Embriagou Tangrouille. É longo, depois te contarei a pirataria delle. Eu era um bruto, tinha confiança em Clubin. Mas o malvado não pôde naturalmente sahir de lá. Ha um Deos, canalha! Olha, Gilliatt, quanto antes, ferro na forja, vamos reconstruir a Durande. Dar-lhe-hemos vinte pés mais. Agora fazem-se os navios mais compridos. Hei de comprar madeira em Dantzick e Bremen. Agora que tenho a machina hão de emprestar-me dinheiro. A confiança voltará.
Mess Lcthierry deteve-se, levantou os olhos com aquelle olhar que vê o céo atravéz do tecto, e disse entre os dentes: Ha um meio.
Depois poz o dedo medio da mão direita entre as sobrancelhas, com a unha apoiada no alto do nariz, o que indica a passagem de um projecto no cerebro, e continuou:
— É o mesmo, para começar em grande escala, algum dinheiro basta. Ah! se eu tivesse as minhas tres notas de banco que o tratante de Rautaine me restituio e que o tratante de Clubin me roubou!
Gilliatt, em silencio, procurou na algibeira alguma cousa, que collocou diante de si. Era o cinto de Clubin. Abrio e pôz na mesa o cinto, no interior do qual a lua deixava ler a palavra: Clubin; tirou da abertura uma caixinha, e da caixinha tres pedaços de papel que desenrolou e estendeu a mess Lethierry.
Mess Lethierry examinou os tres pedaços de papel. Havia bastante claridade para que o algarismo 1,000 e a palavra thousand fossem perfeitamente visiveis. Mess Lethierry pegou nos tres bilhetes, pol-os na mesa um ao lado do outro, olhou para elles, olhou para Gilliatt, ficou um momento calado, depois foi como que uma erupção depois de uma explosão.
— Tambem isto! Tu és prodigioso. As minhas notas do banco! todas tres! mil cada umal os meus sessenta mil francos! Então foste ao inferno? É o cinto de Clubin. Por Deos: leio-lhe o nojento nome. Gilliatt traz a machina, e mais o dinheiro! Isto deve ser contado nos diarios publicos. Vou comprar madeira de primeira qualidade. Adevinho, achaste o esqueleto. Clubin apodreceu lá em algum canto. Compraremos pinho em Dantzick e carvalho em Bremen, faremos um bom casco, carvalho por dentro, pinho por fora. Em outro tempo fabricavam-se navios menos perfeitos e elles duravam mais; é que a madeira era mais secca porque não se construia tanto. Faremos talvez a quilha de olmo. O olmo é bom para estar sempre na agua: andando ora molhado, ora secco, apodrece: o olmo alimenta-se de agua. Que bella Durande vamos fazer! Não me hão de impôr. Já não preciso credito. Tenho dinheiro. Já se vio cousa assim como Gilliatt? Eu estava prostrado, abatido, morto. Chega elle e pôe-me de pé. E eu que não pensava nelle! Já nem me lembrava. Agora lembra-me tudo. Pobre rapaz! Ah! bem, sabes, tu casas com Deruchette.
Gilliatt encostou-se á parede como se vacillasse e baixinho, mas distintamente, disse.
— Não.
Mess Lethierry teve um sobresalto.
— Como, não?
Gilliatt respondeu.
— Não a amo.
Mess Lethierry foi á janella, abrio-a e fechou-a, pegou nas tres notas do banco, dobrou-as, pôz a caixa cm cima, coçou a cabeça, pegou no cinto de Clubin, atirou-o violentamente contra a parede, e disse:
— Ha alguma cousa!
Metteu as mãos nos bolsos, e continuou:
— Não amas Deruchette! Era então por minha causa que tocavas bug-pipe?
Gilliatt, sempre encostado á parede empallidecia como um homem que está prestes a não respirar. Á proporção que se tornava pallido, Lethierry tornava-se vermelho.
— Vejam este parvo! Não ama Deruchette! Pois trata de ama-la, porque ella não ha de casar se não contigo. Que historias são essas? Cuidas que te acredito? Estás doente? pois bem, manda chamar um medico, mas não digas estravagancias, é impossivel que tivesses tempo de brigar com ella e ficares arrufado. É verdade que os namorados são uns tolos! Vamos, tens alguma razão? Se tens, falla; ninguem é tolo sem ter razão. Demais, eu tenho algodão nos ouvidos, talvez ouvisse mal, repete o que disseste.
Gilliatt replicou:
— Disse que não.
— Disseste que não. E teima o bruto! Tens alguma cousa, é claro! Disseste que não! É uma estupidez que passa os limites do mundo conhecido. Por muito menos dão-se banhos medicinaes a uma creatura. Ah! tu não amas Deruchette! Então foi por amor do velhote que fizeste tudo isto! Foi pelos bonitos olhos do papá que foste ás Douvres, que tiveste frio, que tives calor, que tiveste fome e sede, que comeste bichos do rochedo, que tiveste por quarto de dormir o nevoeiro, a chuva e o vento, e que me trouxeste a machina como se traz a uma mulher bonita o canario que fugio? E a tempestade de ha tres dias! Se tu imaginas que eu não faço idéa do que passaste! Estiveste em boas! Foi então com o pensamento em mim que cortaste, rachaste, viraste, arrastaste, limaste, serraste, inventaste, e fizeste tantos milagres, tu só, mais que todos os santos do paraiso? Ah! idiota! Pois olha que me aborreceste com a tua sanphona! Na Bretanha chama-se biniou. Sempre a mesma toada, animal! Ah! tu não amas Deruchette! Não sei o que tens. Lembra-me agora, eu estava neste canto, Deruchette disse: Casava-me. E hade casar comtigo. Ah! não a amas! Feitas as reflexões, eu não comprehendo nada. Ou tu estaes doudo ou eu! E não diz palavra! Não é licito fazer o que fizeste e dizer no fim: não amo Deruchette. Não se faz um obzequio á gente para obrigal-a a ficar com raiva. Pois bem, se não te casas com ella, Deruchette não se casa com pessoa alguma, fica para tia. Em primeiro lugar, preciso de ti. Serás piloto da Durande. Se cuidas que vou deixar-te ir assim! Ta, ta, ta, nada, meu amigo, já te não largo. És meu. Nem te quero ouvir. Onde ha um marinheiro como tu? És o meu homem. Mas falla, com os diabos!
O sino tinha accordado a gente da casa e da visinhança. Doce e Graça tinham-se levantado e acabavam de entrar na sala baixa, espantadas, sem dizer palavra. Graça trazia uma vela. Um grupo de vizinhos, burguezes, marinheiros e aldeãos, sabidos á pressa, estava fora no cáes, contemplando com pasmo e susto o cano da Durande na pança.
Alguns, ouvindo a voz de Lethierry na sala baixa, começavam a entrar silenciosamente pela porta entre-aberta. Entre duas caras de comadres, passava a cabeça do Sr. Landoys que por acaso costumava sempre estar presente nos lugares onde sentiria se não estivesse.
As grandes alegrias querem sempre um publico. Agrada-lhes o ponto de apoio um pouco esparso que offerece uma multidão; partem dahi. Mess Lethierry descobrio repentinamente que tinha gente a roda de si. Aceitou logo o auditorio.
— Ah! vocês estão ahi? Que felicidade. Já sabem a noticia. Este homem lá foi e de lá trouxe aquillo. Bom dia, Sr. Landoys. Ainda ha pouco quando accordei vi o cano. Estava debaixo da minha janella. Não falta nem um prego. Fizeram-se gravuras de Napoleão; eu prefiro isto á batalha de Austerlitz. Sabem vocês da cousa. A Durande chegou emquanto dormiam. Emquanto se mettiam nos lençóes e apagavam as velas, ha pessoas que são heróes. Uns são covardes, vadios, aquecem os seus rheumatismos; felizmente isso não impede que hajam espiritos fogosos. Esses vão onde é preciso ir, fazem o que é preciso fazer. O homem da casa mal assombrada chegou do rochedo Douvres. Pescou a Durande do fundo do mar, pescou o dinheiro da algibeira de Clubin, abysmo mais profundo que o outro. Mas como fizeste isto? Tinhas todos os diabos contra ti, o vento e a maré, a maré e o vento. É verdade que tu és feiticeiro. Os que dizem isso já não são tão pascacios. Voltou a Durande! em vão se enfurecem as tempestades, este estrangula-as. Meus amigos, annuncio-lhes que já não ha naufragios. Já examinei a machina. Está como nova, está completa! Movem-se os cylindros tão facilmente como dantes. Parecia novinha em folha. Sabem que a agua que sahe é levada para fora do navio por um tubo colocado em outro tubo por onde passa agua que entra, para utilisar o calor; pois bem, os dous tubos estão salvos. A machina toda! as rodas tambem! Ah! has de casar com ella!
— Com quem? com a machina? perguntou o Sr. Landoys.
— Não, a pequena. Sim, a machina. Ambas. Ha de ser duas vezes meu genro. Good bye, capitão Gilliatt. Vamos ter Durande! Vamos fazer negocio, vai haver circulação e commercio, e transporte de bois e carneiros! Não troco Saint-Sampson por Londres. E aqui está o autor. Digo-lhes que é uma aventura. Ha de ler-se isto sabbado na gazeta de Mauger. O engenhoso Gilliatt é um finorio. Que dinheiro é este em ouro?
Mess Lethierry acabava de ver, pela fresta da tampa, que havia ouro na caixinha posta sobre as notas de banco. Pegou nella, abrio-a, esvasiou-a na palma da mão, e pôz o punhado de guinéos sobre a mesa.
— Para os pobres. Sr. Landoys, dê estes pounds da minha parte ao condestavel de Saint-Sampson. Sabe da carta de Rantaine? Mostrei-lh’a outro dia; pois bem; aqui estão as notas do banco. Com isto posso comprar carvalho e pinho, e fazer a carpintaria. Veja. Lembra-se do tempo que houve ha tres dias? Que ataque de vento e de chuva! O céo disparava tiros de canhão. Gilliatt recebeu tudo isso nas Douvres, sem que lhe obstasse o desaferrar o navio como eu tiro o meu relogio da parede. Graças a Gilliatt, já sou alguem. A galeota do pai Lethierry vai continuar o serviço, senhores e senhoras. Uma casca do noz com duas rodas, e um tubo de cachimbo, foi sempre a minha mania. Disse sempre comigo: Hei de fazer uma machina destas! Data de longe; foi uma idéa que tive em Pariz, no café que faz a esquina da rua Christina e da rua Delphina, lendo um jornal que fallava do invento. Sabem que Gilliatt era capaz de metter a machina de Marly na algibeira e passear com ella? Este homem é de ferro batido, é aço de tempera, é diamante, um marujo de polpa, um ferreiro, um rapazola extraordinario, mais espantoso que o principe Hohenlohe. A isto chamo eu um homem de engenho. Nós não valemos nada. Os lobos do mar somos nós; o leão de mar é elle. Hurrah, Gilliatt! Não sei o que elle fez, mas certamente fez o diabo, e como é que não lhe hei dar Deruchette!
Desde alguns instantes Deruchette entrara na sala. Não dissera palavra, não fizera rumor. Entrou como uma sombra. Assentára-se, quasi desapercebida, em uma cadeira por traz de mess Lethierry de pé, loquaz, tempestuoso, alegre, abundante de gestos, e fallando em voz alta. Um pouco atraz della, veio outra apparição muda. Um homem vestido de preto, de gravata branca, com o chapéo na mão, parára na abertura da porta. Havia agora muitas velas no grupo lentamente engrossado. As luzes batiam de lado no homem vestido de preto; o seu perfil, de alvura joven e deliciosa, desenhava-se no fundo obscuro com urna pureza do medalha; apoiava o cotovello n’uma almofada da porta, e tinha a fronte na mão esquerda, attitude que lhe era graciosa, sem ser meditada, e que fazia valer a grandeza da fronte na pequenez da mão. Havia uma ruga de angustia no centro de seus labios contrahidos. Examinava e ouvia com attenção profunda. Os assistentes, tendo reconhecido o reverendo Ebeneser Caudray, cura da parochia, tinham-se affastado para deixal-o passar, mas elle ficou na soleira. Havia hesitação na sua postura e decisão no seu olhar. O olhar de quando em quando encontrava o de Deruchette. Quanto a Gilliatt, ou por acaso ou de proposito, estava na sombra, e mal se podia vêl-o.
Mess Lethierry não vio ao principio o Sr. Ebeneser, mas vio Deruchette. Foi a ella, e beijou-a com toda a soffreguidão que póde ter um beijo na fronte. Ao mesmo tempo estendia o braço para o canto escuro onde estava Gilliatt.
— Deruchette, disse elle, estás outra vez rica, e o teu marido é aquelle.
Deruchette levantou a cabeça desvairada e olhou para a sombra.
Mess Lethierry continuou:
— Ha de se fazer o casamento quanto antes, amanhã se fôr possivel, hão de haver dispensas, mas as formalidades são simples, o decano faz o que quer, casa-se a gente antes de gritar: guarda de baixo! não é como em França, onde se precisam banhos, publicações, dilações, um chuveiro de formalidades, e tu serás mulher de um homem valente, e não ha que dizer, é um marinheiro, sempre o pensei desde o dia em que o vi voltar de Herm com a peça de artilheria. Agora volta das Douvres, com a sua fortuna, e a minha, e a fortuna da terra; é um homem que hade dar que fallar; tu disseste: caso-me com elle; pois has de casar; e hão de ter filhos, e eu serei avô, e terás fortuna de ser a lady de um rapagão sério, que trabalha, que é util, que é sorprehendente, que vale por cem, que salva as invenções dos outros, que é uma providencia, e ao menos não casarás, como todas as raparigas ricas deste lugar, com um soldado ou um padre, isto é o homem que mata e o homem que mente. Mas que fazes ahi mettido no canto, Gilliatt? Ninguem te vê. Dôce! graça! todos! luzes! Illuminem o meu genro a giorno. Caso-os, meus filhos, e eis teu marido, e eis o meu genro, o Gilliatt da casa mal assombrada, o grande marinheiro, e eu não terei outro genro, e não terás outro marido, torno a dar a minha palavra de honra a Deos. Ah! Ah! é Vossa Reverendissima, senhor cura, ha de casar-me estes pequenos.
O olhar de mess Lethierry acabava de cahir no reverendo Ebeneser.
Doce e graça tinham obedecido. Duas velas postas na mesa illuminavam Gilliatt da cabeça aos pés.
— Como está bonito! gritou Lethierry.
Gilliatt estava hediondo.
Estava tal qual sahira, naquella manhã, do escolho Douvres, em frangalhos, os cotovellos rotos, a barba longa, os cabellos eriçados, os olhos queimados e vermelhos, a face esfolada, as mãos sangrentas; tinha os pés descalços. Algumas das pustulas da pieuvre estavam visiveis nos braços cabeludos.
Lethierry contemplava-o.
— É o meu verdadeiro genro. Como se bateu com o mar! está em frangalhos! Que hombros! que pés! Como és bello!
Graça correu a Deruchette, amparou-lhe a cabeça. Deruchette tinha desmaiado.