Vejamos agora, como deixamos atrás prometido, e após esta sumária análise exterior, os Vilhancicos por dentro, na sua estrutura e no seu alcance literário e estético, se se lograr descobrir-lho.

Notemos, antes de mais, a desconsoladora circunstância da língua preferida na composição dos Vilhancicos ser não a nossa, mas a espanhola. A razão é obvia de mais para que valha ainda uma vez explaná-la. É um facto. Como no teatro, como nos demais géneros literários, poemas, líricas, romances, história, géneros solenes e miudos. Muito depois de 1640, sacudido o jugo de Espanha, a língua custou a rehabilitar-se para a sua independência literária.

Quáse sempre o Vilhancico se divide em tres Nocturnos distribuindo-se por êles toda a variedade de composições: coplas, romances, endechas, bailes, xácaras, sendo os estribilhos por assim dizer a coluna em torno da qual vai enroscar-se toda esta abundante floração métrica. O português entra em geral no corpo da composição, após o primeiro Nocturno. E é justo dizer-se que não lhe falta certo cunho de graça, nem desdiz da artificialidade, que caracteriza os restantes trechos. Alguns exemplos no-lo confirmarão brevemente.

Em cada Vilhancico entram sete ou oito trechos designados com êsse mesmo nome, a que todos os mais servem como que de comentário ou variante. O número e importância dêles davam o nome ao género. Desde os primeiros versos o Poeta convida jubilosamente os fieis a associar-se à festa a que vão assistir — Natal, Reis ou outra. Estabelece-se o diálogo, que imprime vida e movimento à acção e que sem êle cairia em completa monotonia. Sam Pastores que, avisados, vẽem vêr o menino recemnascido. Sam os Reis, que vẽem adorá-lo e trazer-lhe ofertas. Sam Ciganas que lêem a buena-dicha, Negros que o louvam em seu falar típico, com supressão de r r, e outras particularidades. Menos exactidão que em Gil Vicente na imitação impagável dêsses falares? É de crêr, e assim devia supôr-se. Mas note-se como não se perdeu êsse vinco popular da arte scénica marcado na primeira vêz pelo nosso genial Dramaturgo.

De resto, o que se procura conseguir estava infinitamente longe do que quer que fôsse que significasse preocupação documentária e o fim a que se visava, êsse atingia-se pela graça do dizer simples, pela infantilidade dos sentimentos, pela vivacidade dos afectos, pelo artifício das mais variadas e fantásticas estanças, que fugiam a todo o canon das poéticas de Aristóteles e Boileau. Veja-se êste Estribilho:


Esta si que es gitana!
Esta si que es pulida!
Esta si que és galana!

Ela!
Gitanilla buela,
Ola!
Que as de bailar sola,
Ala!
Que a todos iguala,
Ola!
Que esta fuerça es sola,
Ala!

Esta si que es gitana!
Esta si que és pulida!
Esta si que es galana!


Num outro Estribilho as Ciganas sam primeiro apresentadas duma forma interessantíssima:


A la dança de la buena dicha!
Combida, requiere,
Con ayre, con gracia,
Un tropel de Gitanos balientes,
Una tropa de hermozas Gitanas.

Que buena vá, la dicha!
Que linda vá, la dança!
Que blanda vá, la fiesta!
Que bella vá, la farça!

De Gitanos balientes que buelan,
De Gitanas hermozas que bailan

Entram agora as Ciganas com os seus horóscopos:


Buena dicha, Niño hermozo,
Promete belleza tanta,
Pues contra la muerte eterna
Tendrás tu la vida larga.

Buena dicha te prometo.
Pues serás Niño de plata,
Gran Propheta por las letras,
Gran Capitan por las armas.

Que buena vá la dicha
Que buena vá la dança
Que blanda vá, la fiesta!
Que bella vá, la farça!

Buena dicha galanito,
Que en el semblante señalas,
Que es tu Padre un Padre eterno,
Y tu Madre una Muchacha…


Nas estrofes denominadas Baile é onde os poetas se entregaram às maiores fantasias do metro e da rima. Transcrevo para exemplo o seguinte:


Ea! Zagalejos!
Todos a bailar!

Ea! Pascoal!
Repicad el tamboril,
Y vereis con gracias mil,
Como alegro vo el portal.
Repicad, repicad.
Ai! ai! ai! ai!
Porque al son del instrumento,
Me vereis en gran contento,
Apostarse las al viento,
Sin que llegue el a ganar.
Ea! Zagalegos!
Todos a bailar!

Apartad, apartad,
Y vereis con nuevas galas
Como salen las Zagalas
Que por pico llevan dos alas
Hazer bueltas sin parar
Ea! Zagalegos!
Todos a bailar!

Apartad, apartad.
Que aveis de ver sin tardanças,
Nuevo modo en nuestras danças
Pues quando uno haze mudanças,
Otro toca un atabal.
Tocad, tocad
tan! tan! tan!
E vereis como al desgaire,
Tapalatan!
Hago al son con gran donaire,
Bamboleos de tal aire,
Que le llevo yo el compas.
Tapalata! palatan!
Ea! Zagalegos!
Todos a bailar!

Apartad, apartad
Y vereis que sin rencillas,
Muy a las mil maravillas
Bailaremos de puntillas,
Sin caer ni tropeçar.
Tipi! tipi! tipi! tipi!
tipi! tipi! tipi! tan!
Ea! Zagalegos!
Todos a bailar!

Y puesto que los Zagales
Mostraran su habilidad
Todos alapar, alapar, alapar,
Vaia el Palteado de nuestro logar
Andar! andar!
Los golpes redoblad.
Andar! andar!


Imagine-se o que seria a música adequada ao recorte e acentuação dêstes versos! Evidentemente havia motivo de sobejo para que o gôsto do povo fôsse lisongeado com a quebra de sentimentos duma mais elevada e pura emoção. E a linguagem dos pastores? vejam se não sôa aqui a música agreste das campinas largas do Alentejo ou das serranias verdejantes da Estrela! Se não se respira o cheiro acre do leite dos tarros da cortiça com desenhos caprichosos de primitivos! Se não se divisa nos arabescos contrafeitos dos modestos versos o tipo do pastor de numerosos rebanhos, alto, espadaúdo, sombrio e resignado:

1. Ou Gonçalo? Que será
Tanta grita que oiço, e oibes?
Que será? Disgue, que o medo
Já no estangamo me vole?
2. Pardelhas, Anton, num sei,
Que é isso que bai no monte,
Que tudo son corredelas,
Tudo vulha, e tudo bozes…
1. Se seron ladrões que bem
Roivar os nossos alforges?
1. Prasga a Deos que num me lebem
O jubom e o pelote.


Todos: Verbum caro factum est
Et habitavit in nobis


1. Que disguem, Gonçalo amigo,
Que disguem os Cantadores?
Que disguem? que num entendo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

3. Es que ha nacido esta noche
El niño mas soberano,
Que se ha visto en el orbe.
E ansi venid adorarle,
Llegad dichosos pastores
Al Infante que ha nacido
Hombre, Dios, Señor, y pobre.


ESTRIBILHO

Ai! Repiniquemos a gaita de folle,
Que bem Deus a matar-nos a fome.
Ai! ai! ai!

Repiniquemos o nosso pandeiro,
Que bem Deus a salvar os Galegos
Ai! ai! ai!

Repiniquemos a nossa Pandorga,
Que bem Deus a puchar-nos na Gloria
Ai! ai! ai!

BAILE

Senhor Neno, que bos trouxe
Nosso Infante Celestrial
A nacer, sendo tam grande
Como pobre num portal?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Dai-nos licença, mei Neno,
Que do nosso Pigural,
Por gosto huma oferta
Bos fosquemos cada qual.
Traz Gil mum voa manteiga,
E mum vom leite Pascoal,
Traz Gaspar um Cordeirinho,
E traz hum vom queijo Vrás..


Eis agora os Negros, que na representação do auto, que ia paralelamente acompanhando as ceremonias da liturgia católica, deviam ter para a curiosidade pública o seu melhor quinhão. A nossa dificuldade está na escolha dos trechos. Aqui temos os Vilhancicos que se cantaram na Sé de Coimbra em 1702.

No 2.º Noturno o Vilhancico V começa:

1. Afassa! afassa! que vem
Huns Neglo lá de esse Esphera,
Pala faze humas dança
Con toros os zente pleta.
2. Espela! espela! Gaspalo,
Porque mim traze os bandeila,
E quele que á mim me sigua,
Toro os zente desses fessa.
1. Que dize vozo Flunando?
Quele ter comigo huns gerra?
2. Mim não quele senão paz,
Mas mim fessa sar plimela.
1. Pois vá de gaiofa e dança
E acabalá os pendencia,
Vozo guiá por huns banda
E mim de otro banda os fessa.
2. Sar contenta;
Que quele voszo tocá?
Tambolo ó os casaeta!
1. Mim repenica os marimba,
Ou os flauta Aragoneza.
2. Mim tocalá os pandeilo
E tambem os choloméla.
Chamemos os nosso zente,
E vá de fessa! vá de fessa!


ESTRIBILHO


1. Oh! Flancico?
2. Que, siolo?
1. Oh! Gaspalo?
3. Que me manda?
4. Que quéle Vossê?
1. Vem vozo aqui,
Que mim os chama.
Fancico, toca os pandeilo… lé! lé!
Belchiolo, toca os banza… lé! lé!
Gaspalo, quebra o tambolo… lé! lé!
E Flunando, toque os flauta… lé! lé!
E vamos toro aos Berem
Pala fazermo huns dança,
Aos Minina naciro,
Que a pletos e blancos sarva!


E em seguida, sob a rubríca Dança:


Izazú! como sar linda,
ai! lé!
Os minina que regala,
ai! lé!
Porque ça deitando huns oya,
ai! lé!
Que palece huns tocha clara
ai! lé!
Meus amolo sar nuzio?
ai! lé!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


No ano imediato e na mesma vetusta Sé coimbrã lá figurou de novo a scena dos Negros com um novo e não menos interessante movimento ritmico:


1. Olá pleto siolo alfele,
siolo sarzento?
Zuntamo hirmandale,
Chamamo rei Neglo,
Por ver nesse cazo,
Que hare nos fazelo, andar!
Todos: Que? aqui samo toros,
Siolo Thomé,
Diga vozo que quelé?
1. Ahi Sá Mamede?
2. Aqui sá.
1. Aqui só Guiermo?
2. Aqui sá.
1. Y magi Flancico?
4. Aqui sá.
1. Y magi tamburilero?
5. Aqui sá.
1. Sá aqui os bitangoro?
6. Aqui sá
1. Magi os asubio?
7. Aqui sá.
1. Tora zente zunto?
Nozo aqui temo?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


E acaba com êste formoso Estribilho:


1. Veia os dança do xahia,
Co siolo santo Antonio.
Todos: A la torre del oro
lé! lé!
Barcos de plata
lé! lé!
Son los que la logran
lé! lé!
Rompiendo en el água
lé! lé!
1. Chega os plimo
Como São Benedito?
Sarbete deuzo
lá! lá!
Mias Menina,
lá! lá!
Que em tuas oio,
lá! lá!
Tem os meus vira
lá! lá!
Veia, veia outros dança
Cos siola de Guadarupe
Mia Mãi e mio bem
E lé!
Eses oios mostrá
E lé!
Que zente que le vé
E lé!
Não tem mais que espelá,
E lé!
E veia agora otros dança
Cos siolo do Rozalio,
Chega aqui Neglo
Tum!
Beija pezio
Bum!
Como si flemoso!
bum!
Mias pequinino
tum!
Agola outros dança trazemo,
Cantando, sartando,
Baiando, dancemo, andá:
a la torre del oro
lé! lé!
Barcos de plata
lé! lé!
Son los que logran
lé! lé!
Rompiendo en el agua
lé! lé!