Mas é tempo de avaliarmos o quinhão que neste certamen coube ao idioma nacional. Já o dissemos — é o castelhano, que tem a supremacia neste género de composições. Do grupo que estamos estudando pertencem-lhe 32, sam bilingues 23, mas é preciosa notar que mesmo nos bilingues sam muito reduzidos os trechos portugueses. Nada determinou esta preferência senão o gôsto da época, reafirmâmo-lo, sendo realmente para lamentar que a tanto tivesse descido a deliquiscência do caracter nacional. Mas êste não morrera e assim se afirmava, embora tènuemente, pelo encanto dalgumas composições pelas quais se via bem que a língua se não recusava às louçanias literárias e artísticas do espanhol. Questão de endemia da época. Foram dos melhores patriotas os que fizeram soar a sua lira na língua dos nossos vezinhos. E para só falar dos do tempo que estamos estudando, a quem não acudirá logo à memória o nome do culto e fecundíssimo espírito que se chamou D. Francisco Manoel de Melo? Quem se revio em mais primores de língua pátria como o que tam brilhantemente a empregou na sua Côrte na Aldea?.

Aqui mesmo nos Vilhancicos há graça, suavidade, riqueza vocabular, avonde, sem necessidade da medingaria alheia.

Se não ha mais ou melhor, a culpa não era da língua. Longe disso! Os artistas é que podiam não possuir a mestria de a plasmar com amor, com perfeição, e sobretudo, sem a torcer, sem a violentar.

Veja-se aquele rebuscado da fraseologia, aquele constante jogo de termos antinómicos, aqueles saltos jogralescos de metáforas, todo aquele processo de estender e revestir e moldar os períodos. Idéa e forma tudo obedece a um canon, que não é nosso, que vem de fóra e se estende pelas literaturas todas da época. Nos extractos que vamos fazer esta convicção salta logo à leitura dos primeiros versos. Eis uns Vilhancicos dos Reis, cantados na Capela Real em 1671. O poeta na sua inspiração, que diriamos escandecida, se não fôsse tam glacial, imagina o Menino Jesus nascido em Belem, cidade que êle afirma ter-se afigurado aos Reis, que o foram adorar… Lisboa! E segue assim o desafôro da imagem:

. . . . . . . . . . . .
Aquela é a Porta do Sol,
Lá se vê a Boa Vista,
Nos olhos dessa Senhora.
Vês acolá o Paraiso,
Donde uns Anjos me namoram?
E antes a Porta da Cruz,
O Calvario daqui nota.
O Minino é o Bairro Alto,
Bem que está na Rua Nova.
Olha acolá São Joseph,
Annunciada, a Bem-Posta.
O caminho do presepio
É a Calçada da Gloria,
Vês o Rocio tambem…

Após mais algumas outras rebuscadas fantasias fecha com o Estribilho seguinte:

Ei-lo vai,
Mano Manoel, ei-lo vai,
Ora sus, andai!

Pois que estamos na India, em Belem, Portugal,
Que isto faz amor,
Que isto amor faz,
Que vos hei-de querer
Que vos hei-de amar,
Que não posso mais.
Ei-lo vai, ei-lo vai,
Ora sus, andai.

Mas no Vilhancico, que damos a seguir, ainda se mostra com maior evidéncia a filaucia gongórica. Para ser cantado na Sé de Coimbra em 1692, tal se desentranhou o estro dum inspirado versista:

A Belem á meia noute,
A ver o Sol que madruga,
A quadrilha vai dos montes,
Vai da Côrte a patrulha.
*
Com alegria uns e outros
Vão de tropel e de chusma,
Os pandeiras repicando,
E ponteando as bandurrias.
*
Tanto que em Belem entrou
A sonora turba multa,
Poz-se o silencio de espreita,
A noite se poz de escuta.
*
Muitos donaires diziam,
Cantavam lindezas muitas,
Que o cantar muito esta noite,
Mais foi devoção que furia.
*
Tanto repica a guitarra,
Quando o adufe retumba,
E a soalha e castanheta
Jamais lhe mordia a pulga.

Assi chegão ao presepio,
E vendo a beleza nua
De hum Menino entre palhinhas,
Desta maneira prenuncião:

Ai que lindo que vindes!
Ó que bizarro!
Pois naceis de hũa Rosa,
Cravo encarnado!
O galansete,
O garridete,
O bonitete,
O namorado,
O desgarrado,
Que és cravo encarnado!

Outro exemplo ainda desta estravagância noutros Vilhancicos de Coimbra, em festas dos Reis no ano de 1694:

Curiosos que andais pelo mundo
Aprendendo sciencias
E artes liberais,
Correi, chegai,
Que em Belem
Está hoje um Menino,
Que a todas as Artes
Vos pode ensinar!

E desanda uma esquipática e sesquipedal demonstração em Coplas, cantando o Menino Gramatico sem igual, Retorico sem segundo, Filosofo agudo, Arismetico sem conto, Musico compositor, Astrologo com estrela, Matematico engenhoso, enfim! — Musico, Poeta, Legista, Teologo. E só isto, bom Deus!, porque o autor resolveu, confessando-se modestamente incapaz de fazer o contrário, calar as prendas da Sciéncia, que ornam o Menino Jesus.

Assim diz:

Não vos sei eu numerar
Suas sciencias, que fôra
Reduzir o imenso a cifras,
E cifrar um mar em conchas!

Algumas vezes no rebuscado dos conceitos há uma tal profundidade, que chega a ferir a nossa sensibilidade moral. Aquele amor extravasa do seu ideal de pureza. Há uma vaga de perfume mundano, sensual, pecaminoso.

Insensivelmente nos lembra aquele dulçuroso estilo em que se comprazia por vezes a musa duma soror Violante, duma Maria do Ceo ou duma Madalena da Gloria.

E surge-nos em visão macabra, como num capricho de Goya, o tropel das freiras mundanas, que o bom e virtuoso Bernardes nos pinta vivendo rodeadas de «laminas, oratórios, cortinas, sanefas, rodapés, tomados a trechos com rosas de maravalhas, banquinhas de damasco, franjadas de seda ou de oiro, pias de cristal, guarda-roupas de Holanda, caçoulas, espelhos, craveiros, mangericões, ou naturais ou contrafeitos, passarinhos, cachorrinhos de manga…, jarras, ramalhetes, perçolanas, brinquinhos de sangria, figuras de alabastro ou de gesso, perfumes, alambiques…»

Eis como se inaugurou o 1.º Noturno na festa do Natal de 1697 na velha Catedral dos Bispos-Condes:

1. Jesu, quem me acode,
Que hũ valente me mata de amores?
2. Prendão-me esta ingrata,
Que de amor e ciumes me mata.
3. Acudi, Senhores!
Que me dá dentro na alma os golpes.
4. Quem dá vozes?
1. Uma alma tendida,
A que amor, que é forte,
Traz o desafio
Ao campo esta noite.
2. Acudi, pastores!
Que o veneno entre flores se esconde.
4. Quem dá vozes?
3. Um amante fino,
Cujo feito nobre
Dissimula ofensas,
Tiranias sofre.
2. Acudi, senhores!
Que as entranhas e o peito me rompe.
4. Quem dá vozes?
1. Uma alma abrazada,
2. Um amante pobre,
1. De amores perdida,
2. Perdido de amores,
1. Quem me trouxe ao campo?
2. Quem ao campo me trouxe?
1. Esta noite ao frio,
2. Ao frio esta noite,
3. Qual a causa ha sido?
1. Ciumes e amores,
Que amor e ciumes,
Nunca estão conformes.
2. Ai que estou ferida!
1. Ai que sinto as dôres!
Prendam-me esta ingrata;
2. Jesu, quem me acode?
3. Donde estão as armas,
Que dizeis, que esconde?
2. Quem as mãos tem presas,
Que armas usar póde?
3. Como esta ternura
Render almas soube?
1. Ai, que isto me mata
Jesu, quem me acode?
3. Acudi, pastores!
4. Quem dá vozes?
3. Uns amores d'alma,
Uma alma de amores,
Que se dão batalha
No campo esta noite.
4. Valha-te Deos por Menino,
Por Homem,
Que feres, que matas, que abrazas,
De amores,
Valha-te Deos por Menino,
O que podes…


Mas veja-se como nem tudo se perde nesta monotonia de casuistica amorosa. Figurando os Reis Magos em viagem para Belem assim se exprime o Poeta, querendo traduzir a azafama a bordo da náo já em rota no mar:

Ou! ou! leva, leva, leva,
Aperta, aperta essa escota,
Iça essa vela da gavea, iça!
Orça do leme, orça, orça!

Larga, larga todo o pano,
Mareai as velas todas,
Tocai, tangei as trombetas,
Ande o pandeiro, e viola,
Boa viagem! boa viagem!
Adeos, formosa Lisboa!…

Entre os artificios estróficos encontram-se exemplos dos Ecos em Coplas tam razoavelmente conduzidas, que não resisto à tentação de as transcrever dum Auto do Natal do ano de 1700 celebrado, como os anteriores, na Sé de Coimbra. Imagine-se êste diálogo com os Pastores:

1. Como achastes o Menino?
P. Benino.
1. He seu carinho amoroso?
P. Piedoso.
1. He nos extremos constante?
P. Amante.

Todos:
Por fineza relevante
Nossa esperança se alenta;
Pois Deus nascido se ostenta
Benino, piedoso, amante.

*

1. Sabeis que é fogo incendido?
P. Luzido.
1. Vistes que é raio luzente?
P. Ardente.
1. Sentis que é sol inflamado?
P. Abrazado.

Todos:
Em tanto incendio ateado,
Arda amor em doce chama,
Pois temos um sol, que inflama,
Luzido, ardente, abrazado.

*

1. Que chora neste desterro?
P. O erro.
1. Com suspiros qu'é desculpa?
P. A culpa.
1. Quem lamenta em triste estado?
P. O pecado.

Todos:
Com louvores sublimado
Seja um Deos tam amoroso,
Que vem redimir piedoso
O erro, a culpa, o pecado.

*

1. Que tirais deste primor?
P. Amor.
1. Fará vosso amor progressos?
P. Excessos.
1. Obrará de amor proezas?
P. Finezas.

Todos:
Admirando taes grandezas,
Bem é que mostreis constantes,
Que sabeis pagar amantes
Amor, excesso, finezas.

*

1. Que merecem seus amores?
P. Louvores.
1. E finezas tam notorias?
P. Glorias.
1. E valer-nos nas desgraças?
P. Graças.

Todos:
Pois de amor com novos traços
Se ostenta amoroso e fino,
Demos a um Deos tam benino,
Louvores, glorias, graças.

De igual teor podia apresentar numerosos exemplo.

Outro artificio estrófico se encontra nalgumas Arias, como nesta consagrada a Santa Cecília na sua festa de 1716, na Igreja de Santa Justa, em Lisboa:

Ia Cecilia
Por hermosa
Astro bello,
Luz ostenta,
Y gallarda,
Fenis siendo,
Del martyrio
De la muerte
De la tierra
Es del cielo
Flor perpetua
Astro eterno

Superior
sin igual.
flôr gentil,
Olores dá.
al fenecer,
singular,
en el rigor
en el afan
es bella flor,
astro immortal,
en el luzir,
en el brillar.

Eram autenticos quebra-cabeças artificiosos e despidos de qualquer valor poetico, mas neles refinavam os espíritos mais desempoeirados do século, como se provaria com êsse formoso espírito de D. Francisco Manoel de Melo, já citado.

As Arias, essas significavam, demais, a monomania da imitação de músicas cantadas quer nos Teatros da Côrte, quer nos populares. De lá derivaram e invadiram tudo e a tudo se imposeram ainda ao recinto sagrado das Igrejas.

Coplas, árias e arietas, estribilhos, bailos, seguidilhas (!) e toda essa flora estravagante e irrisória de música, que distraiam as multidões nos Pateos, onde se representavam as comédias dos autores favoritos, iam ouvir-se sob as abobadas augustas dos templos e aí assentariam arraiais até nossos dias, tornando-se de cada vez mais popularescas, mais triviais, mais irreverentes.

Nos Oratorios, que também apontamos acima, há toda uma dramatização, encaminhada a cativar os sentidos.

Como na Opera distribuem-se papeis vários numa mistura de sagrado e de profano, em que êste triunfa e domina. De princípio assinalam-se as Personas que moralmente supone la idea. E indicam-se:

1. Triple — o Amor
2. Triple — a Luzitania
Contralto — o Culto
Tenor — a Inveja infernal!

recitativos, endechas, duetos, entre a Lusitania e o Amor, córos a várias vozes, para acabar toda esta autentica ensalada com uma Aria com trombetas «a 8 vozes com todos os instrumentos», — assinala a nota marginal!

Era o efeito da música da Opera recordando talvez ainda por cima os nomes de muitas das personagens, que viviam cá fóra numa atmosfera de corrução e de escandalo.