Sucedeu o que era inevitavel. Os Vilhancicos foram desaparecendo pouco a pouco. O caracter mais que profano, que lhe deixamos assinalado, bem indicava que o seu logar não era já no templo. E com efeito lá acabam, para vir novamente até à fonte donde surgiram. Executados sobretudo nas festividades do Natal e Reis, nestas continuaram entre o povo, nas aldeias, cantados por gente humilde em toadas ingénuas, dialogadas a vozes ou com acompanhamento de instrumentos, numa enscenação de trajos rústicos, tudo farto motivo a alegria e risos inofensivos e, no fim, razoavel colheita de ofertas para os executantes do popular e gracioso auto.
Bons tempos! velhos tempos já!
Enquanto na lareira ardia o grosso madeiro que durava dias e dias quase em perene brazido e em volta parentes e amigos entretinham os serões descansando das fadigas, ou via-se da porta o costumado:
Menino Jesus Nazaré,
Quer que cá cante?
E era um tropel de cachopinhos que aparecia, à frente o rapaz que segurava o cestinho de verga onde, entre palhinhas, estava deitado o Menino. Risos, atenções e, feito o silencio, os moços que principiavam agrupados em córos:
1. |
Ó meu Menino Jesus,
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Ó meu Menino tam belo,
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2. |
Onde vieste a nascer
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No rigor do caramelo.
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1. |
A Virgem quando caminha,
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Caminha para Belem,
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2. |
Co seu Menino nos braços,
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Que lhe pede de comer.
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1. |
Não ha que comer, Menino,
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Não ha que comer, meu bem.
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2. |
Lá em cima está uma quinta,
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Ó que ricas maçãs que tem!
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O quinteiro, que nela assiste,
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Cego é, que nada vê.
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1. |
Dá-me uma maçã, quinteiro,
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Pró meu Menino comer.
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3. |
Entre a Senhora cá dentro,
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Coma mil, quantas quiser.
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1. |
A Senhora como humilde,
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Não comeu mais que três:
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Uma deu ao seu Menino,
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Outra deu a S. José,
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Outra ficou no regaço,
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Para a Senhora comer.
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2. |
O menino comia a maçã,
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E o cego se punha a ver.
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1. |
Quem te deu a vista, cego?
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Quem te fez tam grande bem?
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1. |
Foi a Virgem Nossa Senhora,
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Mais seu Menino tambem![1].
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Fazia-se nesta altura a colheita pelos donos da casa e tudo abalava de roldão, em risadas alegres, em demanda de novo auditório.
Seguiam-se os Reis, de que damos, colhidos na mesma veia popular os cânticos, entoados por córos de vozes em diálogo:
1. |
Já lá vem (n)a Barca Nova,
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Que fizeram (n)os pelingrinos.
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2. |
Vai Nossa Senhora nela,
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Toda cheia de cravinhos.
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1. |
Já lá vem (n)a Barca-Nova,
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Que fizeram (n)os pastores.
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2. |
Vai Nossa Senhora nela,
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Toda cheia de felôres.
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1. |
Já lá vem (n)os tres Cavaleiros,
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Que fazem sombra no mar.
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2. |
Sam os tres do Oriente,
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Que a Jesus vem buscar.
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1. |
Não o encontraram na vila,
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Nem tam pouco no logar,
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Fôram dar com ele em Roma
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Revestido no altar..
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Já não haverá senão vagas reminiscências por alguns recantos perdidos de Portugal destas costumeiras representativas de doces e tranquilas crenças. As cerimónias do Natal, como as da Semana Santa, como tantas outras festas do culto católico, eram sempre pretexto para uma expansão de sentimentos de suave afecto familiar e social. Os que pretendem aniquilá-las ou substitui-las dar-nos ham em compensação a tranquilidade e a alegria, que elas nos proporcionavam?
Damos, em seguida, a título documentário um Vilhancico, integral, desde a portada, que reproduzimos.