IX

O tratado de Tordesillas e a viagem de Pedro Alvares Cabral


Quando em março de 1493 Christovam Colombo entrou triumphalmente em Lisboa, e apresentou a D. João II os indigenas que trazia de Guanahani e lhe disse que voltava das terras de Cipango, o despeito de D. João II foi extraordinario. Tão pouco o soube esconder que houve fidalgos que lhe propozeram punir com a morte a jactancia do Genovez.[1]D. João II regeitou a offerta, e esmerou-se em dar a Christovam Colombo todos os testemunhos do seu apreço, mas a dôr era profunda e o desejo de desforço imperioso. Sustentando desde logo que as ilhas descobertas por Colombo estavam nos mares adjacentes á Guiné, tratou de mandar uma esquadra a esses paizes do occidente. A Hespanha protestou logo, e D. João II percebeu que tinha de desistir do intento, mas a sua diplomacia não descançou um instante, e o tratado de Tordesillas foi para essa diplomacia um verdadeiro triumpho.

Tanto se empenhavam os reis de Hespanha em tomar conta das terras que Christovam Colombo descobrira, que a toda pressa se pediram para Roma as bullas necessarias, e com tanta rapidez se andou na negociação, facilitada, pelo facto de ser o Papa Alexandre VI — Rodrigo Borgia — hespanhol de nascimento e creatura dos soberanos hespanhoes, que, tendo chegado Christovam Colombo no dia 15 de março de 1493, e só tendo sido recebido por Fernando e Isabel em abril, logo a 3 de maio do mesmo anno se concediam á Hespanha essas ilhas e terras descobertas por Christovam Colombo; mas n’essa noite, ao que parece, pensou-se que seria bom, para evitar disputas com os Portuguezes, que se marcasse uma divisão entre estes, a quem os papas anteriores tinham concedido os mares adjacentes á costa africana do cabo Não e Bojador para deante, e os Hespanhoes, e no dia 4 de maio é que se promulgou a bulla definitiva, em que se traçou a linha divisoria do polo arctico «ad polum antarcticum quæ linea distet a qualibet insularum quæ vulgariter nuncupantur de los Azores et Cabo Verde centum leucis versus occidentem et meridiem».[2] Claramente se vê por este qualibet que a segunda bulla foi redigida á pressa e á noite, não estando presente nenhum cosmographo, que podesse dizer aos negociadores qual era a mais occidental das ilhas dos Açores e de Cabo Verde, porque, como sensatamente observa Humboldt, é singular esta expressão applicada a dois archipelagos que ambos occupam uma grande extensão em longitude. Mas não havia tempo para demoras porque era necessario que apparecesse o facto consummado antes que o rei de Portugal tivesse tempo de saber de que é que se tratava. Depois do Papa ter julgado, suppunha-se que um rei catholico não ousaria protestar.

Enganaram-se; já se não estava em plena edade média, nem D. João II era homem que deixasse o Papa interferir nos seus negocios temporaes. Protestou immediatamente e tanto que a bulla de Alexandre VI caducou, e a linha divisoria, que passava a cem leguas de qualquer das ilhas dos Açores e de Cabo Verde, transformou-se n’uma linha que passava a 370 leguas do archipelago de Cabo-Verde.

As negociações levaram tempo, e não foi sem reluctancia que Fernando e Izabel cederam ao seu impertinente visinho; mas nem Portugal n’esse tempo era paiz cuja inimizade fosse indifferente, nem os reis catholicos tinham ainda consciencia bem nitida da importancia das descobertas feitas; demais havia intimas relações de familia entre as duas casas reinantes.[3]O que é certo é que Portugal triumphou e o tratado assignado em Tordesillas em 7 de junho de 1494 substituiu para todos os effeitos a bulla de 4 de maio do anno anterior.

Pois tão superficialmente se estuda a historia d’estes grandes acontecimentos da vida da humanidade que ainda hoje passa em julgado que foi a bulla de Alexandre VI que marcou a linha divisoria entre as descobertas portuguezas e as descobertas hespanholas, e o proprio Humboldt, eruditissimo como é, tanto parece ignorar o texto do tratado de Tordesillas que, suppondo que foi Christovam Colombo que indicou a linha das cem leguas por consideral-a a linha em que não tinha variação a agulha magnetica,[4]imaginando que a adaptação d’essa demarcação physica á demarcação politica tinha immensa importancia para Colombo, nem levemente allude ao desapontamento que a Colombo a mudança da linha divisoria devia ter causado.

N’esse tratado, comtudo, ha um artigo transitorio que bem claramente mostra o absurdo da supposta descoberta de João Vaz Côrte Real. «E porque pode ser, diz o artigo, que os navios d’El-Rei e Rainha de Castella e Aragão tenham descoberto até vinte do corrente mez de junho algumas ilhas ou terras firmes dentro da sobredita linha que se ha de lançar de polo a polo a trezentas e setenta leguas das ilhas de Cabo Verde para o Poente, assentaram as Altas Partes Contractantes por seus Procuradores, que, para se evitarem duvidas, todas quantas tivessem sido achadas ou descobertas até os vinte de junho, bem que o fossem por navios e gente de Castella, sendo dentro das primeiras duzentas e cincoenta leguas das sobreditas trezentas e setenta a partir das ilhas de Cabo-Verde para o Poente, ficariam para El-Rei de Portugal, e as que tivessem sido achadas dentro do dito prazo nas outras cento e vinte leguas restantes em que deve findar a dita linha pertenceriam a El-Rei e Rainha de Castella, bem que as cento e vinte leguas façam parte das trezentas e setenta leguas que ficam para El-Rei de Portugal. E se dentro dos ditos vinte de Junho não fôr descoberto nada pelos navios d’El-Rei e Rainha de Castella dentro das ditas cento e vinte leguas, o que dentro d’ellas d’ahi em diante se descobrir ficará pertencendo a El-Rei de Portugal, como acima fica dito.[5] Lá se ía a Terra Nova, se ella já estivesse descoberta, porque só o que d’ahi em diante se descobrisse n’essas ultimas cento e vinte leguas de zona portugueza poderia ficar pertencendo a El-Rei de Portugal.

Ora não era de certo platonicamente que D. João II reclamava para si 370 leguas de mar para o occidente, mas em aproveital-as tinha o governo portuguez de ser prudentissimo para não despertar as justas reclamações do governo de Hespanha. Era necessario que se mostrasse sempre empenhado em proseguir as suas descobertas para o oriente, deixando a Hespanha á vontade para o occidente. As 370 leguas deviam servir-lhe para poder navegar com os braços livres para o sul. Tambem no primeiro momento não teria o nosso governo outro intuito. A expedição da India absorvia-lhe todo o pensamento.

Vasco da Gama foi e attingiu a meta, e a gloria immensa que d’ahi proveio e os proventos palpaveis e immediatos que d’ahi resultavam escureceram por um momento a gloria de Colombo. Comtudo era incontestavel que a viagem pelo Cabo da Boa Esperança durava immenso tempo, e tinha difficuldades e perigos sem numero, e a Asia, que Colombo encontrára, estava tão perto! Note-se bem que não havia a esse respeito a minima duvida. Colombo chegára á Asia, chegára ás Indias, não á India riquissima a que aportára Vasco da Gama, não ao Cathay e ao Cipango fabulosamente opulentos de Marco Polo, mas a terras selvagens que não podiam ser senão as sentinellas avançadas do continente maravilhoso e dos archipelagos opulentos. Era ainda para o occidente que se encontrava Cipango, era para o sul? A opinião dos sabios tendia para esta ultima solução, e Pedro Martyr d’Anghiera, o celebre amigo de Colombo, exclamava indignado com uma expedição hespanhola á Florida:

«Para o sul! para o sul! Para que precisamos nós de producções semelhantes ás producções vulgares do Meio-Dia da Europa?»[6] O que deduzimos d’aqui? Deduzimos que, tendo louvavelmente D. Manuel seguido á risca a politica de D. João II, a descoberta do Brazil por Pedro Alvares Cabral foi resultado não do acaso, mas do intento firme e propositado de procurar nos mares occidentaes o que Colombo ainda não encontrára claramente — outro caminho para a India.

Allega-se contra isso o silencio absoluto do governo a esse respeito. Devemo-nos lembrar, porém, que Pedro Alvares Cabral não podia levar instrucções patentes e abertas que denunciassem intentos contrarios aos interesses da Hespanha. Lembremo-nos de que os reis catholicos tinham protestado abertamente contra o projecto de uma expedição portugueza para o occidente tentada por D. João II. Lembremo-nos de que, se a Hespanha prohibia com penas severas as expedições particulares e clandestinas para o lado que o governo estava explorando, não podia consentir que expedições identicas fossem tentadas por um governo estrangeiro. O governo portuguez tinha de se mostrar exclusivamente preoccupado com a navegação do Oriente pela Africa; se as suas esquadras aproveitavam as 370 leguas para se chegarem para o occidente era para evitarem as calmarias da Guiné, e nunca no intento de interferirem com as descobertas hespanholas, tanto assim que, apenas D. Manuel participa ao rei de Hespanha o descobrimento do Brasil, apressa-se a dizer-lhe que é terra muito boa e muito commoda para a navegação da India. Effectivamente o rei de Hespanha obtivera promessa positiva do rei de Portugal de que não tentaria navegar para o occidente, e tão positiva ella era que em cartas a Christovam Colombo declara el-rei D. Fernando, que era aliás bem desconfiado, que não havia motivo para desconfiar das intenções do rei de Portugal. Apesar de tudo estavam sempre prestes caravelas para poderem seguir no encalço das nossas, caso algumas saíssem com intenções suspeitas.[7] Não admira portanto que se falasse bem alto na necessidade de se evitar as calmas da Guiné, que nunca mais preoccuparam os navegadores portuguezes depois do Brasil se ter descoberto, que D. Manuel quizesse convencer bem o rei de Hespanha de que a nova terra não era para elle senão um porto de escala para a navegação do oriente.

Além d’isso, sabe-se pela leitura do famoso livro de Duarte Pacheco, Esmeraldo de situ orbis, que, apesar de todas as precauções hespanholas, já em 1498 Duarte Pacheco recebera ordens para ir sondar os mares do occidente. De um periodo da sua declaração, confusamente redigido, se quer deduzir que Duarte Pacheco houvesse então descoberto o Brasil, e que Pedro Alvares Cabral não fosse senão tomar posse, mas a descripção de Duarte Pacheco é absolutamente inexacta, o que prova que não vira a terra de que fala, e além d’isto não era natural que Duarte Pacheco, depois de ter descoberto secretamente o Brasil, não fosse na esquadra que era exactamente encarregada de o descobrir officialmente.[8] O que prova porém esta declaração é que o governo portuguez não descançava em proseguir na navegação occidental, que, apesar das precauções dos hespanhoes, lá iam navios nossos perscrutar o occidente, e que bem provavel é que Pedro Alvares Cabral, cujas instrucções — por acaso ou de proposito? — só nos chegaram truncadas, fosse encarregado de ver se, mais feliz do que Colombo, encontrava, de caminho para a India, as terras maravilhosas cujo sonho continuava a perseguir a imaginação dos Europeus.

Como era possivel, diz-se, que Pedro Alvares levasse uma esquadra tão numerosa, se fosse no intento de fazer descobertas, que se faziam habitualmente com tres ou quatro caravelas? Em primeiro logar era indispensavel esconder ao rei de Hespanha esses intentos descobridores, em segundo logar, se effectivamente se fosse ter ás terras governadas pelos potentados de que Marco Polo dera noticia, o exemplo do que succedera a Vasco da Gama bem mostrava quanto era necessario que se não apparecesse com pequena força deante d’esses soberanos do Oriente, em terceiro logar o fim principal da viagem era ir á India. Se effectivamente se topasse o Cipango ou o Cathay, a esquadra de Pedro Alvares ia bem, assim forte e numerosa; se nada se encontrasse, ou se se encontrasse terra como a que Colombo encontrara, voltava-se a seguir o velho caminho de Calicut.

Porque é que Pedro Alvares, tendo realisado a descoberta de que ia incumbido, não voltou a Lisboa a dar a gloriosa noticia de tão importante feito? Porque nem elle lhe reconheceu a importancia nem na côrte lh’a reconheciam. O que dava cuidado ao governo portuguez não era que Colombo tivesse descoberto umas ilhas selvagens, era que elle tivesse encontrado um novo caminho para a India, assim como o que desconsolava os reis catholicos, e fazia perder a Colombo o seu valimento e auctoridade, era que, em vez d’elle ter encontrado paizes florescentes e civilisados, encontrára ilhas selvagens.

Depois do que temos dito, não extranham de certo os leitores e encontra acceitavel explicação o facto de D. Manuel não ter dito aos reis catholicos, nem se ter publicado o verdadeiro motivo da descoberta do Brasil. Vejamos agora se os motivos até hoje allegados teem razão de ser.

Foi uma tempestade que arrojou os navios em direcção ao occidente? Extranha tempestade, que, em vez de dispersar os navios, os leva de conserva ao mesmo ponto! Além d’isso nem o piloto da esquadra, que fez a relação que Ramusio publicou nem Pero Vaz Caminha e o physico João nas suas celebres cartas, nem D. Manuel nas cartas que escreveu aos reis catholicos dizem uma palavra a respeito de semelhante tempestade. Foi muito depois que Pedro de Mariz se lembrou de dar, por effeito decorativo, a tempestade legendaria das descobertas á narrativa do descobrimento do Brasil, que lhe parecera provavelmente desenfeitada demais na sua abstenção de episodios.

Note-se além d’isto que, segundo as informações dos roteiros colligidas n’uma preciosa memoria do illustre official da marinha portugueza o sr. Arthur Baldaque da Silva, as tempestades que sopram na região percorrida pelas esquadras de Pedro Alvares, e na quadra em que elle a percorreu são de noroeste e de sudoeste, que, longe de impellirem os navios para a costa do Brasil pelo contrario os afastariam.[9] Mas foram as correntes que levaram os navios, diz Gonçalves Dias na memoria em que procura refutar os argumentos de Joaquim Norberto, e a grande corrente equatorial arrastou os navios para a costa do Brasil.[10] Se Pedro Alvares Cabral tivesse chegado ao Pará, a sua ida teria uma explicação, porque a corrente segue de leste a oeste ao longo do Equador, mas, bifurcando no cabo de S. Roque, segue uma direcção tal, combinada com os ventos geraes, que uma esquadra, diz o almirante Monchez ha pouco fallecido, «não pode senão afastar-se cada vez mais da costa, quando quer dobrar o cabo da Boa Esperança, visto que de um lado os ventos permittem navegar para leste, do outro a costa afasta-se para oeste».[11] Se se appella para as correntes da costa, vemos, segundo o testemunho do mesmo almirante Monchez, «que durante a monção de SO levam para o norte»;[12] ora a monção de SO dura de abril a setembro, exactamente quando Pedro Alvares Cabral era, segundo se diz, arrastado pelas correntes para o sul.

Estes factos pareceram tão singulares ao almirante Monchez que não podendo explicar por elles a descoberta do Brasil, e não conhecendo os elementos politicos da questão, deduz o seguinte: «É pois quasi impossivel dar outro motivo plausivel da chegada de Cabral á vista de terra pelos 16° de latitude, a não ser um erro de caminho por esse navegador.»[13] Esse erro tinha de ser constante durante 15 dias, e seria singular que só se désse quando trazia em resultado a descoberta do Brasil, ao passo que antes d’isso tinham passado, sem o mais leve engano, pelas Canarias e por Cabo Verde, e depois d’isso foram direitos ao cabo da Boa Esperança.

Confronte-se isto tudo, note-se que temos prova authentica de que em 1498, do anno immediato áquelle em que Vasco da Gama sahira de Portugal, foi Duarte Pacheco incumbido de ir descobrir terras a sudoeste, que o governo hespanhol tanto desconfia dos intentos de Portugal que espreita as nossas costas e tem navios promptos para seguir qualquer expedição portugueza que para o occidente se dirija, que D. Manuel, para desfazer suspeitas, trata logo de declarar que a terra descoberta a utilidade que tem é servir de porto de escala para a navegação da India, que trata tambem de disfarçar a distancia a que o Brasil fica de Cabo Verde, porque, tendo-lhe dito Pero Vaz de Caminha na sua carta que a nova terra ficava a 660 ou 670 leguas da ilha de S. Nicolau no archipelago de Cabo Verde, para os reis catholicos diz elle que fica a 400 leguas não da ilha mas do Cabo Verde que bem se pode suppor que seja o da costa africana,[14] de fórma que ficava assim o Brasil dentro da demarcação do tratado de Tordesillas, e veja-se se não é de uma evidencia absoluta que a descoberta do Brasil estava nos planos do governo portuguez, não porque soubesse a terra que ia encontrar mas porque não queria deixar aos seus rivaes o proveito de um caminho para a Asia mais curto do que o que Vasco da Gama acabava de descobrir.

Não vale a pena demorar-mo-nos nem um instante na refutação das lendas relativas a suppostos descobrimentos do Brazil, anteriores a Pedro Alvares Cabral. A lenda mais pueril é a que suppõe que, não só antes de Pedro Alvares ter aportado a terras de Santa Cruz, mas ainda antes de Colombo ter aportado a Guanahani, um Portuguez, João Ramalho, chegára a terras brasileiras. Baseia-se essa lenda n’um supposto testamento feito por esse João Ramalho, que foi efectivamente um dos primeiros colonos do Brasil, mas que se tornára, pela sua residencia entre selvagens, quasi tão selvagem como elles, testamento feito por elle em 1580, e em que declara que havia noventa annos que estava no Brasil, aonde chegára, por conseguinte, em 1490. Era portanto macrobio este venerando descobridor que não podia ter menos de 20 annos quando chegou ao Brazil, e, ainda quando o fosse, era singular o testamento de um homem, que, aos 110 annos, tendo perdido as noções da vida civilisada, com tanta precisão chronologica dizia que estava no Brasil não ha oitenta ou noventa annos, como seria natural que o fizesse e talvez ainda exaggerando a conta, mas rigorosamente ha noventa! Ora d’esse testamento não ha noticia senão a que dá um d’esses chronistas fradescos do seculo XVII, que tão facilmente, como é sabido, falsificavam datas e inventavam documentos. Mas o golpe mortal n’esta lenda infantil foi dado por um eminente escriptor brasileiro, o sr. Candido Mendes de Almeida, que depois de mostrar o absurdo da lenda e a ausencia de documentos em que se baseasse, publicou uma carta de um jesuita que, estando em 1559 na terra em que João Ramalho habitava, e dando conta aos seus superiores dos progressos da conversão dos indigenas, lhes fallava n’um Indio que lhe pediu que lhe dissesse quaes os dias em que devia jejuar, porque deixára de o saber desde a morte de João Ramalho, que era quem em vida lh’o dizia.[15]

O que é, porém, estranho é que ainda encontremos com relação ao Brazil a questão dos mappas. Porque mestre João diz a D. Manuel que, para saber o sitio d’essa terra, veja um mappa-mundi antigo que tem Pero Vaz Bisagudo, d’ahi se conclue que o Brasil já fôra descoberto, tanto que já o inseriam n’um mappa. É a eterna historia dos mappas conjecturaes, dos mappas em que appareciam ilhas que ninguem vira e que ninguem chegou a vêr, e aquella terra ao sul do Equador, a terra incognita austral, a terra antichthona ou o alter orbis. Pois não se vê realmente que as cartas muitas vezes acompanhavam as descobertas, e que, se em rigor era possivel que se fizessem descobrimentos que ficassem desconhecidos, o que era impossivel era que a noticia d’esses descobrimentos se propagasse de fórma que lhes inserissem os cartographos nos mappas os resultados, e que apesar d’isso ficassem desconhecidos dos escriptores, dos sabios e dos governos!

Cem vezes o repetiremos: os descobridores do seculo XV, cheios de respeito tradicional pela sabedoria antiga, não aspiravam senão a encontrar o que os antigos, no seu entender, conheciam perfeitamente, e por isso faziam esforços para adaptar o que descobriam e que encontravam aos mappas conjecturaes. Como veremos, o que procuravam agora era a terra antichthona, a que já se podia chegar desde o momento que se passára a zona torrida, mas que estava separada da nossa pela extensão dos mares. A essa terra antichthona suppunham chegar agora encontrando o Brasil, e era ao Brasil até que chamavam o novo mundo. Que Pedro Alvares Cabral julgára ter chegado á terra separada pelo mar do hemispherio septentrional é incontestavel, e por isso facilmente se convenceu, pelo que julgou deprehender dos gestos dos selvagens, que estava n’uma ilha, a que deu o nome, primeiro que o Brasil teve, de ilha de Vera Cruz.[16] Julgamos porém ter demonstrado que esse descobrimento se liga intimamente com o de Colombo, é a sua consequencia, como era tambem, ao mesmo tempo, o da Terra-Nova por Gaspar Côrte Real. As descobertas portuguezas conjugadas com as de Colombo produziam a descoberta do Brasil. Os dois grandes problemas geographicos estavam resolvidos: a zona torrida não era inultrapassavel, e por isso Pedro Alvares Cabral, seguindo as pizadas de Bartholomeu Dias e de Vasco da Gama transpunha o Equador, entrava em plena zona torrida e ía tranquillamente ao hemispherio meridional. A extensão do mar oceano não era infinita, tinha o Atlantico outra margem, e Pedro Alvares Cabral ía com plena confiança procural-a. Sem os descobrimentos portuguezes nada faria Colombo, porque os Açores eram um ponto capital de partida para as expedições occidentaes, e porque os terrores da zona torrida e das suas proximidades, não lhe permittiriam seguir o parallelo que seguiu. Sem o descobrimento de Colombo nada faria Pedro Alvares Cabral, porque não ousaria ir tão longe para o occidente. A Hespanha e a Portugal devia o mundo essa transformação da sua geographia. Completal-a-hia a circum-navegação do globo e o encontro do caminho pelo occidente para a Asia, e, como se a Providencia quizesse d’essa forma sellar de um modo indestructivel a collaboração dos dois povos na obra mais importante da historia da humanidade, foi um capitão portuguez commandando navios hespanhoes que deu ao mundo o cinto argenteo do rasto das suas quilhas, foi Fernão de Magalhães que planeou dirigiu e iniciou a expedição, foi Sebastião d’El-Cano que a completou e concluiu, e para que n’essa consagração ultima e solemne da conquista definitiva da Terra pelo homem, não faltasse tambem a patria gloriosa de Colombo, a audaz, a pensadora e sonhadora Italia, ía Pigafetta na expedição que narrou, para que assim os tres povos latinos, que eram egualmente benemeritos da civilisação e da sciencia, tivessem n’esse coroamento da grande obra os seus representantes. Essa epopéa ultima que ía pôr o fecho ao trabalho épico de um seculo para sempre glorioso nos fastos da humanidade, foi um Portuguez que a dirigiu, foi um Hespanhol que a completou, foi um Italiano que a escreveu.


  1. Veja-se a minha Historia de Portugal, t. IV, pag. 272.
  2. Foi Humboldt que fez notar a differença entre as duas versões da mesma bulla, Hist. de la géographie, etc., sec. II, t. III, pag. 52, nota.
  3. A filha de Izabel a Catholica desposára o filho d’el-rei D. João II, o principe D. Affonso que morreu de uma desastrada quéda de cavallo a 13 de julho de 1491.
  4. Humboldt, Histoire de la géographie, etc., sec. II, t. III, pag 55.
  5. Quadro elementar das relações politicas e diplomaticas de Portugal com as diversas potencias do mundo, t. II, pag. 390 Lisboa, 1844. O tratado vem publicado in extenso.
  6. Pedro Martyr d’Anghiers, Oceanicas, dec. VIII, cap. 10.
  7. Foi o duque de Medina-Sidonia que se offereceu para ir com as suas caravelas em perseguição dos portuguezes, e a 2 de maio de 1493 pediam os reis catholicos ao duque que as tivesse prestes, a 12 de junho e 27 de julho affiançavam a Colombo que não havia motivo para se desconfiar do rei de Portugal, doc. n.ºs 16, 50 e 54 publicados na Collecção de viagens e descobrimentos, citados pelo sr. Teixeira de Aragão a pag. 18 da sua Breve memoria sobre o descobrimento do Brazil.
  8. O trecho da Esmeralda é o seguinte: «Como no terceiro anno do vosso reinado do anno de Nosso Senhor de mil quatrocentos noventa e oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte occidental, passando além do grande mar oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme com muitas grandes ilhas adjacentes a ella, que se estende a setenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo arctico.» Esmeralda liv. 2.º, cap. I, transcripto pelo sr. Teixeira de Aragão na sua Breve Noticia, etc., pag. 47. D’este trecho deduz-se que Duarte Pacheco foi mandado descobrir para o occidente em 1498, o que não faz senão confirmar o que temos dito, mas não que Duarte Pacheco descobriu o Brasil. Nem elle diz que achou e navegou essa terra, mas sim que essa terra é achada e navegada, e isto em 1505.
  9. Roteiro geral do globo, tom. XI, sec. 1.ª, pag. 2 (Lisboa 1839). Mouches, Les côtes du Brésil, sec. II, pag. 8 (Paris, 1864).
  10. N’uma das sessões do Instituto Historico Geographico do Brasil, o imperador D. Pedro II propoz como assumpto de discussão «se a descoberta do Brasil foi intencional ou devida ao acaso». Joaquim Norberto fez uma memoria interessante sustentando que a descoberta foi intencional, Machado de Oliveira fez uma memoria de uma futilidade inexcedivel e de uma grosseria imperdoavel que nem merece que d’ella nos occupemos, Gonçalves Dias sustentou com argumentos broncos, mas com vigor de estylo, mostrando-se muito talentoso e muito erudito, que a descoberta fôra occasional. Joaquim Norberto replicou e muitissimo bem. O unico argumento de algum peso que Gonçalves Dias apresentava era o da corrente equatorial que corre de léste para oeste. É esse exactamente o que o sr. Baldaque da Silva destróe technicamente e de um modo completo.
  11. Les côtes du Brésil, pag. 115, nota a.
  12. Ibid., pag. 12.
  13. Ibid., pag. 116, nota a.
  14. «Sahindo do dito Cabo Verde, esta terra jaz entre Oeste e Sudoeste, ventos principaes, e dista do dito Cabo Verde quatrocentas leguas». Carta de Portugal enviada ao rei D. Manuel ácerca da viagem e successo da India, traduzida da versão italiana pelo sr. Prospero Peragallo, e por este publicado com o texto italiano e annotado nas Memorias da commissão portugueza do centenario de Colombo. O trecho que citamos vem a pag. 9 in fine. Como se vê, estando a 400 leguas de distancia não a oeste, mas a oes-sudoeste a distancia do meridiano de Cabo Verde ao meridiano de Vera-Cruz não podia ser superior a 370 leguas. Pero Vaz de Caminha disséra-lhe: «Topamos algūus synaes de terra seendo da dita ilha (S. Nicolau de Cabo-Verde) segundo os pilotos diziam obra de VIᵉ Lx ou LXX legoas ᵉlc (670 ou 701 leguas)». Esta carta de Pero Vaz Caminha tem sido muitas vezes publicada. Fazemos o nosso extracto da memoria do sr. Aragão, onde vem nos documentos, pag. 66.
  15. A carta do jesuita Antonio de Sá escripta em hespanhol aos jesuitas da Bahia e datada de S. Vicente, 13 de junho de 1559 diz: «Un Indio que se llama Belchior está puesto en ayunar todos los dias que manda la Iglesia, y sin yo le hablar nada, preguntóme que le hiziese saber los dias de ayuno y cual no se comia carne, diciendome que antes que muriese Juan Ramallo que el se lo dezia y ayunaba todos los dias que la Iglesia manda.» O estudo a que nos referimos feito pelo sr. Candido Mendes de Almeida vem publicado na Revista trimensal do Instituto Historico Geographico do Brasil, e n’esse periodico vem tambem as memorias de Joaquim Norberto, Gonçalves Dias e Machado de Oliveira, a que atraz nos referimos.
  16. «ao qual monte alto, diz Pero Vaz de Caminha, o capitam poz o nome de monte pascoal e aa tera a tera de Vera-Cruz». Depois de ter entrado em communicação com os habitantes é que Pedro Alvares Cabral considerou a terra como uma ilha, e a denominou ilha de Vera Cruz.