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Os Côrte-Reaes — Americo Vespucio
Fernão de Magalhães


Se antes da descoberta de Colombo, se tinham arrojado por mais de uma vez navegadores açorianos para os mares do Occidente, com muita mais razão o fariam, logo que esse importante acontecimento se realisou. Evidentemente as viagens haviam de multiplicar-se.

O esforço dos Açorianos e muito especialmente dos Côrte-Reaes dirige-se então sobretudo para o Norte. Desde que Colombo chegou ás Antilhas, que elle tomou por archipelago asiatico, e a Cuba que elle tomou então por um pedaço de terra firme asiatica, opinião em que por muito tempo persistiu, os navegadores de todos os paizes e principalmente os que, antes de Colombo, como os Açorianos, já se occupavam de descobertas para o occidente, haviam de procurar seguir-lhe as pisadas e procurar, o que elle não conseguira, encontrar as terras maravilhosas de Cipango e do extremo oriental das Indias. A convicção geral era que para o sul é que se conseguiria esse desideratum, e já vimos como Pedro Martyr d’Anghiera soltava com um enthusiasmo quasi irritado esse grito: Para o sul! para o sul!

Era esse effectivamente o caminho que todos em geral seguiam. Colombo e os Pinzon ou foram mais para o occidente, ou foram para o sul. Mas isso não queria dizer que a idéa da navegação pelo norte não entrasse tambem em muitos espiritos.

O mappa de Toscanelli, aquelle famoso mappa que era provavelmente o que estava nas mãos de Pero Vaz Bisagudo, obedecia aos principios do geographo que o desenhára e que tinha a convicção de que ao occidente havia um prolongamento da Asia, que defrontava com o continente europeu e africano desde a Islandia até Guiné. Se, indo ao centro, Colombo encontrára effectivamente a Asia, como suppunha, mostrava portanto que era verdadeira a conjectura de Toscanelli, restava confirmal-a completamente. Foi isso que levou Pedro Alvares Cabral e muitos outros navegadores, ou ás occultas ou a descoberto, a dirigirem-se para o sul, foi isso talvez o que levou os Côrte-Reaes para o Norte.

Lembram-se os leitores de que uma das supposições da geographia systematica dos antigos era que o mar Baltico tinha saída para o oriente e que ía ligar-se com o mar Indico. Strabão dizia que «o facto de que certos navegadores viessem por mar da India á Hyrcania não é considerado como certo, mas que isso seja possivel, Patroclo nol-o assegura.»[1]Pomponio Mela conta muito positivamente que Metellus Céler, sendo proconsul das Gallias, recebêra de presente de um rei germanico uns Indios que, açoitados pela tempestade, tinham vindo da India á Germania «vi tempestatum ex Indicis æquoribus abrepti[2] Discutiu-se muito no nosso tempo se estes homens, que eram, ao que parece, e no caso de ser verdadeira a noticia, de uma raça differente da européa, não seriam afinal de contas senão Esquimaus arrojados, como a barcos tantas vezes succedêra e tem succedido, das costas americanas ás costas irlandezas, escocezas ou allemãs. O que é certo é que a idéa de haver communicação entre a Europa e a India pelo norte, indo-se, porém, do occidente para o oriente estava enraizada no animo de muitos geographos antigos.

Assim que se encontrou ou se suppoz encontrar a costa asiatica indo-se pelo occidente, a communicação tanto se podia fazer pelo norte, como pelo centro, como pelo sul. Effectivamente as costas asiaticas, como o suppozera Toscanelli, estendiam-se de norte ao sul, desde a Islandia até á Guiné. Era evidente que a expedição do norte tentava os açorianos. Logo que Gaspar Côrte-Real em 1500 encontrou terras, imaginou, como Colombo, ter encontrado terras asiaticas, e uma carta de Pespertigo, embaixador de Veneza em Portugal, é, para esclarecer esse assumpto, muito curiosa.

Diz elle: «Tambem crêem (os Portuguezes) estar ligada (a Terra dos Côrtes-Reaes) com as Antilhas que foram descobertas pela Hespanha, e com a terra dos papagaios (Brasil) ultimamente achada pelos navios d’este reino que foram a Calicut.»[3] Humboldt que teve conhecimento d’este documento, espanta-se muito com elle. «No mez de outubro de 1501, diz o sabio escriptor, sabia-se já em Portugal que as terras do norte cobertas de neves e de gelo são contiguas ás Antilhas e á Terra dos Papagaios novamente encontrada. Esta advinhação que proclama, apesar da ausencia de tantos élos intermediarios, como ligação continental entre o Brasil descoberto por Vicente Vanez Pinzon, Diogo de Sepe e Cabral e as terras geladas do Lavrador é muito surprehendente[4] A surpreza de Humboldt vem apenas da pouca importancia que elle dá á interferencia portugueza no descobrimento da America. Desde o momento que elle ignora as tentativas dos Açorianos para chegarem a terras occidentaes antes de Colombo, as tentativas que fizeram depois, desde o momento que elle não conhece as expedições clandestinas dos Portuguezes para encontrarem ao sul as terras asiaticas que Colombo não achára, desde o momento que attribue a um méro acaso a descoberta do Brasil por Pedro Alvares Cabral é evidente que não pode achar a concatenação de todos estes esforços, de que provém o presentimento da ligação de todas essas terras descobertas separadamente. Era sempre a Asia que todos os descobridores julgavam encontrar, ilhas da Asia ao sul, terras da Asia ao norte. N’um mappa publicado recentemente pelo sr. Harnin, o brilhante apologista dos Côrte-Reaes, se diz que viram n’umas terras a que não chegaram «serras muito espessas, pollo quall segum a opiniom dos cosmófircos se cree ser a ponta d’asia[5] A prioridade do descobrimento da Terra do Lavrador e da Terra Nova por Gaspar Côrte-Real está hoje tão completamente demonstrada, depois que o sr. Harnin e o sr. Patterson publicaram os seus excellentes trabalhos, que nos parece escusado insistir na refutação das pretenções dos dois Cabots, venezianos ao serviço da Inglaterra. É realmente curioso e estranho, que as descobertas portuguezas, apenas são feitas, encontram logo echo em todo o mundo, e as descobertas estrangeiras, que destruiriam as nossas, tanto em segredo se fazem, que só depois se suppõe reconhecel-as por uma referencia vaga ou por um documento apocrypho. Apenas Gaspar Côrte-Real volta da Terra Nova, apressa-se Pedro Pascaalijo, embaixador de Veneza (de Veneza, que é a patria de Cabot) a communical-a ao seu governo, Alberto Contino ao duque de Mantua. Das viagens de João Cabot só se deprehende que podia ser que tivessem existido, por uma d’essas referencias vagas que temos mencionado. Mais ainda. Henrique VII de Inglaterra, em cujo proveito fizera Cabot a sua expedição, dá a 19 de março de 1501 a mais larga e avultada doação que é possivel imaginar-se a tres negociantes de Bristol, Richard Warde, Thomaz Assehepurat e John Thomaz, associados com os açorianos João Fernandes, Francisco Fernandes e João Gonçalves, para que fossem explorar, descobrir, povoar e dominar todas e quaesquer terras nos mares oriental, occidental, austral, boreal ou septentrional, garante-lhes que, se alguns estrangeiros ou outros individuos ousarem navegar para as partes onde elles forem, sem licença, serão punidos, embora invoquem qualquer concessão que lhes tenha sido feita, etc. É uma verdadeira concessão ingleza, positiva e ao mesmo tempo minuciosissima, sem restricções nem peias, como de quem quer que as coisas se façam e não regateia os meios, mas, se João Cabot se tivesse antecipado a estes mercadores e em proveito do rei de Inglaterra, era absolutamente disparatada semelhante concessão, que só se pode fazer, quando os lezados, se os houver, pertencerem a paiz estrangeiro, e possam, portanto, ser tratados como inimigos.[6] Mas a origem da lenda aponta-a com segurança o sr. Ernesto do Canto. Está na adulteração da versão latina de uma das cartas de Pascaaligo. Diz que «os selvagens têem nas orelhas umas argolas de prata che senza dubbio pareno sia facti a Venetia. E, dizendo isto, quer o embaixador dar uma idéa do aperfeiçoamento d’aquella arte selvagem. O traductor diz tranquillamente: cælaturam Venetam in primis præ se ferentes. E assim, por uma traducção de má fé ficou estabelecido que antes dos Portuguezes alli tinham estado Venezianos. E quando Pascaaligo affirma que a terra descoberta por Gaspar Côrte-Real até ahi nunca fôra vista por ninguem, Madrijuan traduz: terra até ahi a quasi todo o mundo desconhecida.[7] Mas, apesar d’isso, essas terras do norte figuraram por muito tempo nos mappas como terras dos Côrtes-Reaes. Na Terra Nova, no Canadá, no golpho de S. Lourenço conservaram-se nomes portuguezes que se reconhecem atravez da adulteração, como Por Baye bahia da Torre, Mira, Minas, Porto-Novo, transformado em Port-Novy, e o nome de Lavrador por tanto tempo consagrado difficilmente se pode attribuir a outra linguagem que não seja a portugueza. Felizmente são escriptores americanos e dos mais notaveis que defendem a gloria portugueza e justificam as nossas reivindicações.[8]

Na segunda viagem Gaspar Corte-Real singrou mais para o norte, mas nunca mais voltou. Foi em sua busca seu irmão Miguel Corte-Real, mas tambem se perdeu entre os gelos, voltando as caravelas que acompanhavam a sua. E é de ver que, longe de procurarem terras para o sul das que primeiro tinham descoberto, e que seriam de certo mais attrahentes e tentadoras, era sempre para o norte que seguiam, tão radicado estava no seu pensamento o desejo de procurarem a Asia, a Asia opulenta, por aquellas gelidas paragens septentrionaes, de fórma que a procura d’essa passagem do noroeste que fez tantos martyres nos tempos modernos e glorificou tantos navegadores illustres, foi tambem pelos Portuguezes primeiro tentada com audacia mais notavel ainda por serem meridionaes que nem tinham visto talvez em toda a sua vida neve, mas que orgulhosos de terem provado que não era inhabitavel a zona torrida queriam a todas as zonas declaradas inhabitadas pelos antigos, ampliar a sua demonstração, e quando Franklin, o heroe moderno, que esse ao menos sempre vivera em regiões onde o frio é um inimigo constante que se conhece e com que se lucta, ia deixar n’essas ignotas regiões o seu cadaver e dos seus e o casco esmigalhado do seu navio, encontrou talvez enterrada em eternos gelos a caravela de Miguel Corte-Real, e branquejando entre as neves á luz crepuscular do sol dos polos os ossos dos audaciosos Portuguezes que, na epocha aurea da sua gloriosa expansão, não queriam deixar um só recanto do mundo a que não levassem a ousadia do seu genio e o ardor das suas explorações.

Por muito tempo perseverou na exploração do Norte a gente açoriana e minhota. A lista dos descobridores não pára nos Côrte-Reaes. João Alves, Fagundes e outros exploraram essa costa, ainda depois dos francezes e inglezes terem tentado tambem ir exploral-a. Houve até tentativas de colonisação, e esses mares foram por muito tempo theatro de actividade dos pescadores portuguezes. Hakluyt ainda notou que eram Portuguezes e hespanhoes os que mais se occupavam da pesca do bacalhau. Navios portuguezes estavam, em certas occasiões, cincoenta ou sessenta.[9] Mas depois cahiu sobre tudo isto a mortalha da decadencia, que, não recobre ao menos a mortalha do esquecimento.

Entretanto o Brasil, considerado uma ilha, continuava a ser explorado por Gonçalo Coelho, por Christovão Jacques, Fernando de Noronha, etc., e tambem pelos hespanhoes Pinzon e Solis e pelo veneziano Cabot. N’algumas das expedições portuguezas[10]foi como piloto Americo Vespucio; do seu nome fez Ylacomilas na sua Cosmographiae introdutio o nome do novo continente, e por esse facto se lamenta a injustiça da posteridade, que esqueceu o nome do grande descobridor Colombo para glorificar o nome do fanfarrão cosmographo.

É esta questão que rapidamente vamos tratar.

Colombo morreu julgando sempre que chegara á Asia e o mundo partilhava a sua opinião. Quando Pedro Alvares Cabral encontrou terra ao sul do Equador, já se não poude acreditar que se estivesse nas visinhanças do Cathay e do Cipango. Não o permittia a latitude. Quando as explorações successivas fizeram reconhecer que se estava realmente n’um grande continente, o que se imaginou, o que se entendeu, porque a tudo presidia a lembrança das theorias da antiguidade, foi que se estava em terra antichthona, e por isso, como diz D. Manuel na sua carta ao rei catholico, muitos lhe davam o nome de Novo Mundo.[11] Era effectivamente alter orbis, a quarta parte da terra, com a qual nada tinham as ilhas asiaticas e o continente asiatico que Christovam Colombo descobrira.

Quando os Portuguezes em 1501, suppunham que as Antilhas, o Brazil e a Terra Nova constituiam uma terra unica, suppunham que essa terra era a Asia. Quando depois de 1501 se viu que o Brazil se prolongava muito para o sul, entendeu-se que as Antilhas e a Terra Nova faziam parte da Asia, mas que o Brazil constituia a quarta parte do mundo, o alter orbis, o Novo Mundo, a terra central de Ptolomeu.

Portanto não se fazia uma injustiça a Colombo, nem talvez a Cabral, só aos capitães das expedições em que Americo Vespucio navegara, porque essas expedições é que tinham identificado o paiz novamente descoberto com a antiga terra de Ptolomeu, mas Americo o cosmographo, que espalhara a noticia, foi que colheu o proveito, e o novo mundo descoberto, não por Christovão Colombo, que nem acceitaria semelhante gloria, mas pelas expedições de que fazia parte Americo, recebeu o nome de America,[12] sem que Colombo, se ainda estivesse vivo, podesse ou quizesse protestar.

De certo, depois, quando se reconheceu a verdade, quando se percebeu que Novo Mundo era tudo, seria de perfeita justiça restituir a Colombo o que a Colombo era devido, mas já se tomara o habito da nova denominação, demais a mais euphonica e agradavel, e America ficou sendo o todo, quando ao principio só fôra America uma parte.

Não temos ensejo agora de discutir a questão das verdades ou das mentiras de Americo. Parece-nos comtudo que tem sido injustamente maltratado o cosmographo florentino. É-lhe muito adverso o visconde de Santarem, que a seu respeito publicou um livro celebre,[13] mas o visconde de Santarem não tinha conhecimento das expedições clandestinas portuguezas, conhecimento que torna hoje mais verosimil a viagem em que Americo Vespucio encontrou, indo para o occidente, Pedro Alvares que voltava da India, e que fôra considerada pelo visconde de Santarem apocrypha.

Reconhecida a existencia da terra central, era indispensavel procurar meio de se chegar á Asia. As expedições portuguezas levavam todas o fito de encontrar um estreito que as conduzisse aos mares asiaticos. Essa idéa do estreito era predominante nos espiritos do tempo. Era assim que se fazia a communicação entre os dois mares, e era por estreitos, segundo a cosmographia antiga, que se fazia a communicação entre o mar exterior e os golphos que elle formava, que eram, como dissémos, o mar Persico, o Indico, o Mediterraneo e o Caspio.[14]

Como estreitos conhecia a geographia conjectural os mares descobertos por Christovão Colombo. Havia-os em Panamá, e alguns rios da America do Sul foram tomados primeiro por estreitos.[15] D’ahi a lenda que attribue a Fernão de Magalhães o ter tido já conhecimento, por um mappa, do estreito que descobriu. O que elle tinha era a lição dos mappas conjecturaes, era o culto pelas velhas theorias que faziam passar por estreitos as aguas do mar exterior para os mares interiores, e se elle descobriu o que os outros não acharam, se á Hespanha levou essa gloria, foi porque D. Manuel, cançado de não encontrar senão terra para o sul, entendeu que o novo continente se immergia ao sul, como ao norte, pelo polo. Magalhães perseverou, dizendo que penetraria no estreito, ainda que tivesse de sumir-se na região polar, onde ha o frio e a brisa;[16] depois a descoberta das ilhas do mar Pacifico ao sul da Asia, feita por Antonio de Abreu e os outros expedicionarios enviados por Albuquerque, mais o convenceu de que haveria ilhas tambem ao sul da America como as havia ao sul da Asia, e que entre essas ilhas havia de encontrar por força o famoso estreito que o conduziria pelo occidente á Asia.

Tinha concluido este meu trabalho, e tratava já de lhe pôr o fecho, quando exigencias de uma missão official me levaram a Hespanha. Assisti no dia 11 de outubro de 1892, em Huelva, á ultima sessão do congresso dos americanistas, e, não podendo apresentar o livro que estava por completar, apresentei uma resumida indicação em francez das idéas que lhe serviam de fundamento. Acolhida com extraordinaria benevolencia, essa communicação teve a felicidade de encontrar echos sympathicos. O sr. Hamy, membro do Instituto de França, e dignissimo successor do grande Quatrefages, e o sr. Marcel, distincto geographo, deram noticia ao congresso, logo em seguida á leitura do meu resumo, e a mim em particular, de trabalhos seus que confirmavam plenamente a minha conjectura ácerca da descoberta do Brasil. A linha de demarcação de Tordesillas fôra origem de falsificações cartographicas inspiradas pelo zelo patriotico dos cartographos, falsificações pelas quaes Portuguezes e Hespanhoes procuravam fazer entrar dentro da zona dos seus paizes as terras que se iam descobrindo. Assim effectivamente o governo portuguez mostrava que não fôra platonicamente que pedira e obtivera as 370 leguas além das ilhas de Cabo-Verde. Tratou logo em seguida de explorar esse mar occidental, cujos segredos Colombo desvendára, e a viagem clandestina de Duarte Pacheco não era senão uma d’essas explorações, como foi com esses intuitos exploradores que Pedro Alvares Cabral muito de proposito se desviou do caminho que o devia conduzir directamente á India. Descoberto o Brasil, tratava D. Manuel de explicar ao rei catholico que essa terra não ficava fóra da sua zona, e tratavam os cartographos portuguezes de sanccionar essa affirmação, da mesma fórma que os cartographos hespanhoes procuravam incluir as Molucas na zona concedida ao seu paiz. Foi ainda a esse intuito que obedeceram Abreu e Serrão, enviados por Albuquerque a explorar os mares para além de Java e de Sumatra, e que nas suas audaciosas viagens não só tomaram conhecimento de um grande numero de ilhas que n’esses mares pollulavam, mas entreviram a Nova

Guiné, e adivinharam a Australia.

Esta ultima affirmação é feita pelo sr. Hamy, e falta-me agora o espaço e o tempo para fazer entrar no quadro d’este livro essa importante e ainda hoje obscura questão do descobrimento da Australia.

Mas o que fica assente de um modo incontestavel é que a participação dos Portuguezes no descobrimento da America foi efficaz e activa. Se o seu governo hesitou perante a temeridade de Colombo, se sacrificou demasiadamente aos conselhos da fria razão no momento em que era necessario um lance de audacia e um arrojo de visionario, logo, despeitados por esse momento de fraqueza, e estimulados pelo glorioso commettimento dos visinhos, precipitaram-se com verdadeira furia para esse occidente que tinham receiado desvendar e foram tambem como Colombo em procura da Asia pelos mares poentes. Uns e outros, Gaspar Côrte-Real ao norte e Cabral ao sul, esbarraram com a mesma barreira que detivera Colombo, barreira que os despeitava, que os indignava, que teimavam em considerar como uma longa cadeia de ilhas que se desdobrava, como um cordão de sentinellas ferozes e asperas, deante da Asia resplandecente, e que era afinal bem mais fulgurante de maravilhosas riquezas do que essa Asia decrepita e estagnada no seu somno de seculos. Por entre os gelos do Norte, por entre as suppostas ilhas ao Sul, procuravam todos, Hespanhoes e Portuguezes, o caminho de Cathay e de Cipango. Quando se fatigaram de tão vãs tentativas, quando se convenceram de que era um novo mundo que tinham deante de si, barreira inquebrantavel que lhes vedava por esse lado o caminho para o Oriente, a perspicacia e a audacia e a perseverança do portuguez Magalhães conseguiram desfazer essa ultima illusão, reconstituir no espirito humano a Terra inteira na logica da sua estructura, e conquistar para a Sciencia o morgado da Humanidade.


Notas editar

  1. Strabão XI, pag. 518.
  2. Pomponio Mela, t. III, c. 5, 98.
  3. Les Corte-Real par mr. H. Harrisse, pag. 209. Ernesto do Canto, Os Côrtes-Reaes, pag. 211.
  4. Histoire de la Géographie, etc., t. IV, pag. 263.
  5. Legenda do mappa mandado fazer em Lisboa por Alberto Cantino em 1502. O sr. Ernesto do Canto transcreve-a a pag. 208 do seu livro.
  6. Esta curiosa doação foi publicada em texto latino por Bidle na obra que saío anonymamente em Londres, 1831 e que se intitula A Memoir of Sebastian Cabot with a Review of the History of Maritime Discovery, illustrated by documents from the Rols, new first published. Abrange de pag. 312 a 320. O sr. Ernesto do Canto publica tambem o texto latino com a traducção portugueza no seu livro Os Côrtes-Reaes e abrange de pag. 74 a 87.
  7. E. do Canto, Os Côrtes-Reaes, texto italiano a pag. 45 e 46, traducção latina de Madrijuan a pag. 47 e 48.
  8. São interessantissimas as indicações dadas a esse respeito pelo sr. Patterson, na sua magnifica memoria. A bahia de Fundy, diz elle, é evidentemente a Bahia Funda. Tambem nota que apparece lá o nome de Tanger, que não podia ter sido posto senão pelos portuguezes, senhores então d’essa praça, e sempre tão relacionados com ella.
  9. «There are about 100 sail of Spaniards who come to take cod, who make it all wet and dry... As touching their tonnage I think it may be 5,000 or 6,000. Of Portugals there are not above fifty or sixty sail, whose tonnage may amount to 5,000, and they make all wet.» Citado pelo reverendo George Patterson na excellente memoria que publicou nas Trans-Roy. Soc. Canada, e que se intitula The Portuguese in the North-East coast of America, and the first European attempt at Colonization there. A lost chapter in American History, pag. 145. Esta memoria foi lida na Royal Society a 28 de maio de 1890.
  10. Esta exploração outr’ora tão importante e activa, na qual estavam empenhados capitaes e interesses tão avultados, concorrendo para ella tantas partes do nosso continente, vê-se hoje reduzida a uma duzia de navios que a entretêem apenas em dois centros de pescarias: Figueira da Foz e Lisboa.» A. A. Baldaque da Silva, Estado actual das pescas em Portugal, pag. 166. E diz, em nota, que a pesca do bacalhau era tão importante no tempo de D. João III e d’el-rei D. Sebastião «que foi providenciada por um regimento particular para as frotas que annualmente expediam a esta pescaria.»
    Emquanto á colonisação, que foi motivada exactamente pela importancia da pesca do bacalhau, foi promovida por varias pessoas de Vianna do Minho, muito interessadas n’este negocio da Terra Nova, pelas muitas relações que tinham com os Açorianos. D’esta colonisação dá conta um interessante folheto publicado ha poucos annos, mas escripto no seculo XVI, que se intitula: Tratado das ilhas novas e descobrimento d’ellas e outras coisas feito por Francisco de Souza, feitor d’El-Rei Nosso Senhor, na capitania da cidade do Funchal da ilha da Madeira e natural da mesma ilha e assim de parte da nação portugueza que está em uma grande ilha, que n’ella foram ter no tempo da perdição das Espanhas, que ha trezentos e tantos annos em que reinou El-Rei Dom Rodrigo. Dos Portuguezes que foram de Vianna e das Ilhas dos Açores a povoar a Terra Nova do Bacalhau vae em sessenta annos, do que succedeu, o que adiante se trata. Anno do Senhor de 1570. Ponta Delgada, S. Miguel, Açores 1877.
    É curiosa a mistura de lenda e de verdade que n’este titulo se encontra. Ao lado de uma colonisação perfeitamente authentica n’uma ilha certa é conhecida ainda a velha lenda da ilha das Sete Cidades colonisada pelos sete bispos, que fugiram da Peninsula com os seus fieis no tempo do rei Rodrigo!
  11. «Outros chamam-lhe, diz D. Manuel, terra nova ou novo mundo».
  12. Veja-se o estudo desenvolvido de Humboldt, que aliás não vê as coisas debaixo do nosso ponto de vista nas notas finaes do vol. V, da sua Histoire de la géographie, etc., da pag. 180 em diante.
  13. Recherches historiques, critiques et bibliographiques sur Améric Vespuce et ces voyages. — Paris, sem data.
  14. Veja-se a carta de mr. Letronne a Humboldt, publicada no vol. III, da sua Histoire de la géographie, etc., da pag. 119 em diante.
  15. Veja-se Humboldt, Histoire de la géographie, etc., tom. II, pag. 26 e segg. Falando do globo de João Schoner diz: «Figurou no globo o estreito no logar em que Colombo debalde o procurara.» No globo de Weimar (que tem a data de 1534) ha dois estreitos, um a 42° de latitude sul, e outro no isthmo de Panamá a 10° de latitude ao norte do Equador.
  16. «Se não tivessemos achado este estreito, diz Pigafetta, o capitão-general estava disposto a ir até 75 graus para o polo antarctico onde no verão não ha noite, ou muito pouca e da mesma maneira no inverno não ha luz do dia ou ha pouquissima.» Navegação e viagem que Fernando de Magalhães fez de Sevilha a Moluco no anno de 1519, pag. 61 da traducção ingleza de sir Stanley de Alderley, (Londres, 1874).