Os descobrimentos portuguezes e os de Colombo/XI
XI
Conclusão
Lancemos os olhos para o espaço que rapidamente percorremos. Encontramos a sciencia antiga desvelando maravilhosamente alguns dos segredos mais importantes da cosmographia, mas estacionada n’uma solução do grande problema que se lhe affigurara satisfatorio, e que era comtudo um obstaculo invencivel para todo o progresso geographico. Depois de mil conjecturas phantasistas, pode-se dizer que um grande resultado se obtivera: o reconhecimento da esphericidade da terra. Mas o orgulho humano oppunha-se invencivelmente á hypothese que désse a essa Terra, e portanto á raça pensadora que a habitava, um logar inferior no concerto do universo. O sol continuou a girar acompanhado por todo o systema planetario e por todo o mundo stellar em torno da terra immovel e soberana. Era comtudo esse um terrivel escravo, porque bastava a sua ausencia para que fenecesse a vegetação e definhasse a vida; por isso tambem era natural que nos pontos onde o seu contacto fosse mais proximo o excesso do calor produzia o effeito contrario, e désse tal intensidade á vida que a fizesse desapparecer na conflagração do abrazo. O mytho de Zeus e de Semele parecia traduzir este pensamento.
Quando a terra mãe, a Terra que o deus terrivel fecundava, o queria ver de perto com todo o explendor do seu vulto, com toda a grandeza da sua omnipotencia, bastava a presença do amante para a reduzir a cinzas. Era em torno da zona média da terra que o sol descrevia o seu giro, era ahi portanto que se approximava da terra, e ahi forçosamente a vida desappareceria no incendio dos seus raios.
Assim era a Sciencia que vedava o caminhar do homem. O mundo civilisado dilatava-se, graças aos esforços e á audacia dos Phenicios, mas, por mais audaciosos que fossem, considerariam uma insania suprema transpor os limites das zonas defezas.
Para essas regiões que os mortaes não podiam pisar transportava a phantasia humana a residencia d’aquelles, que, libertos dos laços da vida mortal, podiam existir em condições negadas á fraca humanidade. Foi pois assim que para além do terminus da sciencia positiva, ou para o norte, ou para o sul, a imaginação collocou as regiões da bemaventurança.
Veiu a edade média, em que uma sociedade barbara procurando reatar o fio da civilisação, tomou como ideal supremo da sua sabedoria a sabia antiguidade.
Se Ptolomeu e os outros eram respeitados pelos seus contemporaneos como eximios sabedores, para os seus novos discipulos eram perfeitamente oraculos, e a Sciencia continuou, mais do que nunca, a deter o homem dentro dos limites consagrados. Assim como os Phenicios, fundeados por assim dizer á beira da Syria, sondaram o Mediterraneo primeiro e depois o Atlantico, o infante D. Henrique de pé no posto mais avançado da costa europeia sentiu o desejo ardentissimo de sondar o grande mysterio. Realisou-lhe a audacia dos seus navegadores o seu sonho querido, quebrou-se a barreira da zona torrida, e ampliou-se para o occidente o conhecimento do Oceano. As affirmações da sciencia antiga iam caindo uma a uma sem que os navegadores ousassem comtudo desmentil-as, senão nos pontos em que a experiencia mostrava definitivamente a sua fallibilidade. A Africa foi tomando os seus contornos verdadeiros, dobrou-se a sua ponta meridional, seguiu-se para o oriente, sem se encontrar o mar mediterraneo das Indias, a peninsula indostanica foi tambem reintegrada na sua verdadeira fórma, o Cathay da narrativa semi-legendaria de Marco Polo appareceu na figura extranha d’essa China immobilisada, apesar de rica e sabia, o Cipango transformou-se no archipelago japonez, e as ilhas do meio-dia asiatico começaram a apparecer disseminadas nos mares como as pérolas dispersas de um collar que se despedaçasse. Foi essa a obra gigante dos Portuguezes.
Mas a elles tambem se devia o encontro de um novo posto de observação, de uma atalaya estimulante perdida no seio do Oceano. Como os Phenicios em Tyro, como o infante D. Henrique em Sagres, ia Colombo mais adeante sonhar mundos desconhecidos nos penhascos dos Açores. Era d’alli que via as caravelas de outros sonhadores como elle, a quem só faltava o genio e a perseverança, demandar alguma ilha mysteriosa para além do Oceano, ou os restos d’aquella mysteriosa Atlantida, que fôra um dos vagos sonhos da antiguidade. O alargamento da terra seguiu a sua ordem logica; os Phenicios chegavam de Tyro a Carthago, e desvendavam o Mediterraneo, de Carthago a Cadiz e descobriam o Atlantico, os Portuguezes de Sagres desvendavam o segredo do Oceano para o sul e chegavam ao Cabo da Boa Esperança, do Cabo da Boa Esperança quebravam o mysterio do mar oriental, e aportavam a Calicut e a Goa, e de Goa irradiavam para o sul e para o oriente as investigações finaes. De Sagres tambem, singrando para o occidente, iam poisar nos Açores; estava reservado aos Hespanhoes, guiados por Colombo, a audaciosa investigação que ia dar a America ao mundo.
O que era necessario, porém, era ligar essas duas grandes emprezas. Por circumstancias verdadeiramente providenciaes foram os representantes dos dois povos ligados na mesma empreza, que ataram as fitas soltas das grandes explorações oceanicas, e esse enlace supremo foi Magalhães que o começou, foi Elcano que o concluiu.
Assim nas descobertas como em todas as emprezas do espirito humano é a evolução que se manifesta. Não procede por saltos a natureza, tudo se liga e se concatena. A missão dos grandes homens está exactamente em serem os elos d’essa cadeia. As tentativas infructiferas, dispersas, quasi inconscientes dos Catalães de Jayme Ferrer, dos Normandos de Bethencourt, dos Genovezes de Vivaldi, e dos pescadores e marinheiros portuguezes que procuravam arcar com o cabo Não ou devassar o Atlantico unia-as o infante D. Henrique, dava-lhes o nó que as aproveitava, o cabo Bojador dobrava-se e os Açores e a Madeira sahiam do seio das ondas. As tentativas infructuosas tambem dos Açorianos e dos Madeirenses ligava-as a mão poderosa de Colombo, e dava assim um novo fusil á cadeia dos descobrimentos e a America apparecia. E por isso os povos quando encontram na sua historia um d’esses homens insignes, sem renegar os seus esforços collectivos, nem deixar de lhes reconhecer a importancia, saudam n’esses grandes vultos uns entes extraordinarios que souberam dar uma realidade positiva aos seus sonhos e ás suas aspirações, e foram n’esse tumultuar de pensamentos desconnexos e inconscientes, as radiosas incarnações da Consciencia da humanidade.