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que o tempo e as condições mesologicas lhe haviam talhado. Mas no fim de contas, não sei se a despeito d'essas circumstancias ou devido a ellas, a princesa erudita fica a pouca ou nenhuma distancia do ideal commum, da mulher forte, exaltada pelos hagiographos portugueses, ou antes da Vierge forte. Será por causa da heroica abnegação e paciencia com que tomou sobre si a dupla empresa de solteira e sabia que não escolhera? ou por motivo dos amargos desgostos que fada alguma lhe havia profetizado no berço? ou emfim pela parte activa que teve na cruzada do bem, e pela pureza exemplar da sua conducta?

Tres vezes illustre ― no campo da historia, na republica das sciencias e artes, e na constellação das virtudes.

E para que nada lhe falte podiamos collocá-la egualmente na quarta categoria, entre as Inspiradoras. Não só porque em pleno renascimento, na era camoniana da litteratura portuguesa que é ao mesmo tempo a idade aurea do humanismo, serviu de assumpto a numerosos poetas e prosadores, em vernaculo e latim, mas tambem, porque foi amada, se a fama não mente, com paixão estremosa por um fidalgo da côrte ― parente d'aquell'outro namorado que, um seculo antes, de Amador de uma Infanta, se havia transformado em santo Frei Amador.[1]

O facto em si não pode ser comprovado, como direi no fim d'este estudo. E' mesmo muito provavel que seja mera lenda, como a loucura de Bernardim Ribeiro pela Infanta D. Beatriz. Mas a ser verdade, não prejudicava em nada a purissima fama de D. Maria, nem ia de encontro ao que sabemos dos costumes da época e em geral do genio amoroso dos antigos portugueses ― da sua constellação natural apurados no amor, a ponto de ser quasi costume entre elles o quererem impossiveis e o morrer, matar, ou enlouquecerem de magoa amorosa.

A quem objectar que a côrte de D. João e D. Catharina — introductores e fautores fanaticos da Inquisição e da Companhia de Jesus — era antes que tudo escola de santa doutrina, respondo que nem por isso deixou de ser o que fôra nos seculos anteriores: escola de fina galanteria, de onde sahiram mestres e modelos na arte de amar; e selva de aventuras romanticas onde se desenrolaram innumeros dramas de amor.

Ao dito de D. Francisco de Portugal sobre as damas portuguesas podia, quem quisesse, oppôr o de outro observador não menos sagaz — o mote: son enamoradas porque son discretas ou, virado ao enves, son discretas porque son enamoradas, apontando, além da Religiosa de Beja, muitos mais exemplos comprovativos de que os exercicios espirituaes, longe de embotarem, exaltam ás vezes aquella sen-

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  1. Luciano Cordeiro occupou-se de D. João da Silva na interessante monographia sobre Infanta D. Leonor, Uma sobrinha do Infante, Lisboa, 1894.