Página:A infanta D. Maria de Portugal e suas damas.djvu/25

Em outra occasião, ao receber em seus aposentos, cercada de quatro matronas, quatro damas e tres donzellas que pareciam tres graças, a um legado pontificio, [1] ella apresentou-se com o mesmo recato: toda de velludo preto, e corpo afogado. E' verdade que nesse ensejo contava vinte annos a mais. Mas tendo herdado joias esplendidas da mãe enfeitara-se d'esta vez com ricos adornos de ouro, e uma corba de rubis e diamantes. [2]

Não falta, porém, quem a descreva em galas vistosas. Quando na côrte festejavam, n'um dos ultimos momentos de gloria e regosijo de D. João III, a puberdade do Principe D. João, que ensaiava armas no novellesco torneio de Xabregas (1552), a Infanta brilhava em setim encarnado com recamado d'ouro e prata, e dianteira de trança de ouro e perolas. E essas galas tornaram-na tão bella que o poeta que assim descreve as roupagens — um moço da camara do Infante D. Duarte [3] — não se aventura a devassar-lhe os encantos do rosto. Por circumloquios num simile feliz, comquanto pouco novo, diz apenas: «para a eu desenhar vou-me com o pintor que cobriu o rosto de Agamenon no sacrificio de Iphigenea, porque cousas em que a natureza abalisa seu extremo não lhe chega engenho humano para entendê-las.» [4]

Do mesmo modo procedeu o auctor das Decadas. Tocando vagamente na sua graça natural cita o proloquio: a quem Deus quer bem, no rosto lhe vem. [5]

Evidentemente, entre os eruditos da côrte constava que a Infanta, bizarra, e na consciencia da dignidade do seu estado, não admittia que ao vulgo profano se fallasse das linhas do seu rosto, ou da elegancia das suas esplendidas formas esculpturaes.

Apenas o velho Resende, ao tributar-lhe homenagens, adiantava-se até tocar em alguns pormenores: os cabellos ruivos, o andar divino, incessu dea, lembrando a Venus de Lucrecio: incessu patuit dea.

Mas esse... fallava latim. [6]

Para findar, mais uma observação.

Parece que graças á robustez da sua constituição, D. Maria conservou longamente certa frescura juvenil. Venturino, o secretario do cardeal Alexandrino, opinava, ao vê-la em 1571, que nenhum desprevenido lhe teria dado os cincoenta annos já decorridos.

 

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  1. Miguel Bonello, mais conhecido como Cardeal Alexandrino, enviado do papa Pio V, cujo sobrinho era.
  2. A descripção da viagem do cardeal, escrita pelo secretario Venturino, foi publicada por Herculano no Panorama, vol. v. (Opusculos VI p. 90).
  3. Jorge Ferreira de Vasconcellos na Segunda Tavola Redonda cap. 47. A descripção do vestuario da Infanta é extensa e complicada; muito mais, porém, a das vestimentas da Rainha que só em anneis ostentava dez, de rubins e esmeraldas.
  4. Manuel da Costa serviu-se da mesma figura rhetorica ao descrever o lucto da Rainha D. Catharina, no funeral de seu esposo. (Op. cit. p. 459). Ambos se lembraram de um famigerado quadro grego de Timante, imitado freqüentes vezes, p. ex. num fresco de certa casa de Pompeja, reproduzido em diversos Manuaes de arte e archeologia.
  5. Panegyrico § 61.
  6. Epistola ad D. Emmanuelis P. F. Invicti Filiam D. Joannes III Invicti Sororem Mariam principem eruditissimam. E' uma das producções em que a Infanta é equiparada ás deusas da mythologia grega, em especial á da sabedoria: Pallada crediderim — incessu dea maxima certe credi digna fuit-namque dearum esse aliquam dubitare nefas. Resende e os seus discipulos, muito cesaristas, divinisavam toda a familia reinante.