Página:A infanta D. Maria de Portugal e suas damas.djvu/24

Rainha-viuva de Hungria [1] para sua irman D. Catharina, é um facto incontestavel e comprovado. [2]

Com quasi igual certeza consta que o eximio artista retratou do natural, além dos reinantes, ao principe real, ao Infante D. Luiz e uma D. Maria de Portugal e que esses quadros foram parar, ainda no seculo XVI, a Hespanha, onde figuraram até 1608 na Sala dos Retratos do palacio El Pardo. [3] E como em 1550 havia uma unica D. Maria de Portugal é quasi superfluo relevar ainda a perfeita concordancia da idade, e da indole que a pintura revela. Mas não será desnecessario acentuar de um lado os traços de parentesco com os quadros da Luz e o do Mosteiro da Encarnação — como são a testa alta, cabello loiro, olhos azues, tez muito clara — [4] e do outro lado a semelhança notavel da retratada com el-rei D. Manoel. [5]

O trage cujos tons sombrios dão realce á singular alvura das mãos e do rosto, finamente modelado, está em harmonia na sua singeleza distinctissima com a nobreza natural do porte, e com a melancholica suavidade da physiognomia. O velludo preto, afogado, de corte modesto, guarnecido apenas na frente com alguns laços de côr clara que se repetem nas mangas golpeadas, denuncia a elevada categoria do personagem, sem ostentar as suas grandes e falladas riquezas que tantas cobiças despertaram. [6] Poucas joias de preço destacam-se do estofo e do veu de gaze, sem annullar o aspecto tristonho do quadro. Poucas, relativamente — diadema, collar, remate do veu e cinto — se tivermos em mira, conforme reclama a justiça, outros quadros da mesma epoca e do mesmo pintor, repre- sentando damas das familias reaes de Hespanha, porque o vestuario de algumas está litteralmente coberto das mais raras preciosidades da ourivesaria e joalheria.

Veja-se o retrato da Rainha D. Catharina [7], o da outra D. Maria, filha da Imperatriz D. Isabel de Portugal, [8] o da Princeza D. Joanna, [9] todos no Prado. E tambem o da Rainha D. Leonor que juntamos a essas paginas, por ser inteiramente desconhecido em Portugal. [10] Vestida á franceza, com decote discreto, em côres brilhantes, parece tão juvenil como a filha; mais bonita e alegre, não. [11]

Fosse em conformidade rigorosa com o seu estado de innupta, fosse por entender que dizia bem conf a tez e o colorido, ou que não precisava de luxuosos atavios e grossa pedraria para se distinguir entre as primeiras, a virgem sábia — egregium virgo decus innuptarum — escolhera aquelle vestido grave, á antiga portugueza.

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  1. Essa irman de Carlos v, que igualmente apparece na Vida da Infanta (a p. 23 e 41), chamava-se tambem D. Maria. E seu retrato, pintado por Moro, tambem lá estava no Pardo, até 1608.
  2. A 22 de Setembro de 1552 a Rainha D. Catharina de Portugal mandou pagar a Moro a somma de 200 mil reis (500 cruzados) pelos retratos d'ella e de D. João III. Vid. Raczynski, Lettres, p. 255.
  3. Vid. Cean-Bermudez, Diccionario III, pag. 204.
  4. Nos retratos da Luz e da Encarnação nota-se todavia, numa bocca pequenina, uns beiços um pouco grossos que lembram os da casa de Austria, ou digamos os de D. Leonor. — E' uma differença que logo se impõe à primeira vista. O nariz tambem é differente, sendo mais bem talhado no quadro que reproduzimos.
  5. Em 1882 Joaquim de Vasconcellos dizia a este respeito numa Nota sobre a proveniencia do Retrato publicado no Plutarcho: «A tradição é veridica e em abono d'ella citamos o seguinte documento, desconhecido de Madrazo. E' um quadro em taboa do sec. XVI, que appareceu na Exposição de Arte Ornamental em Lisboa em 1881 (N. 178 do Catalogo p. 201). Representa Nossa Senhora com o Menino, sob cujo manto se abriga de um lado o Papa Julio III (1550-1551) e a familia de D. João m: o rei, a rainha, D. Sebastião, sua mãe D. Joanna, e as irmãs del Rei D. Isabel e D. Maria, com os respectivos nomes. Do outro lado estão uns frades trinitarios, em oração. Pertence á Casa Pia de Lisboa. O retrato da Infanta D. Maria concorda, perfeitamente, com o de Madrid». Não o vi ainda. Estranho todavia ver figurar num quadro, pintado entre 1550 e 1551, ao lado de pessoas vivas, uma filha de D. Manuel, que sahindo de Portugal em 1526, morrera em 1538. E D. Sebastião? Como se vê, a questão dos retratos exige novos estudos in loco.
  6. A descripção de Madrazo diz: «Está en pie: lleva trage negro, de cuello alto y una toca o velete de cujas puntas unidas al puño pende un joyel que tiene asido con la mano derecha. — Mas de media figura; tamaño natural. Decoraba el antigo Alcazar y Palacio de Madrid cuando occurrió el incendio de 1734. — F. L. (i. é Fotografia Laurent) Alto 1,07; ancho 0,83. (1873).
  7. Prado N.o 1485 (ant. 124): Laurent 412. Da Collecção de Felipe II no Alcaçar de Madrid. Vid. Raczynski, Lettres 255. E' interessante comparar o luxuoso trage com a descripção, dada' por Jorge Ferreira de Vasconcellos, na obra citada na Nota 56.
  8. Prado 1486 (ant. 1258); Laurent 213. Copia de Pantoja, mas sobre um original que parece ser de Moro (1554); classificado outr'ora como Infanta de Portugal. Da Collecção de Felipe II no Alcaçar de Madrid.
  9. Prado 1488 (ant. 1792). Da Collecção de Felipe III no Palacio de Valladolid.
  10. O retrato de D. Leonor é reproducção de uma formosa heliogravura, publicada numa revista alleman, de arte. (Zeitschrift für bildende Kunst XXI 322). O original, attribuido a François Clonet, mas tambem a Bernhard van Orley, pertence á collecção Minutoli (Liegnitz, na Silesia). Virada levemente para a esquerda, D. Leonor segura nas mãos uma carta sobrescritada A la cristianisima y mui golirosa (sic) siñora la Reyna mi siñora (sic). Cabello castanho, com fita de perolas e firmal; collar de pedraria no collo descoberto; corpo de bronze esverdeado; mangas de purpura com fios de prata, golpeadas de branco e com debrum de pelles. Fundo verde. E' obra de arte de alto valor. O busto parece de pessoa baixa. Quanto á physiognomia, repito que os beiços denunciam claramente a casa de Austria — muito mais do que nas effigies da filha. Uma certa contracção da testa ou depressão nas fontes, que parece indicar concentração dolorosa, é commum ao retrato de D. Leonor e ao de D. Maria no convento da Encarnação.
  11. O retrato condiz com as descripções de D. Leonor, feitas por embaixadores estrangeiros. Um que D. Manoel havia enviado a Castella para contratar o seu terceiro casamento, formulou a sua impressão nas palavras; «nom he muy fermosa, nem lhe podem chamar feia; tem boa graça e bom despejo... nom tem bons dentes e he pequena de corpo». Corpo Chronologico I, Maço 21 N.° 26, apud. Villa Franca p. 276. Outro, de Veneza, opinava: «Non è brutta nè bella. A me pare sia molto buona. Non ha per alcun modo di quelle grandezze espane, ma è vera fiammenga.» — No Retrato da Misericordia de Lisboa parece alta e gentil. Creio que não foi feito in loco et tempore.