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mundo » havia desejado ter sua filha a par de si, sem nunca o conseguir. [1]

A Infanta ainda viveu mais vinte annos, não sem ter sido importunada uma ultima vez em 1558, logo apos o fallecimento da mãe. Era pretendente, pela 3.a ou 4.a vez, Felipe II, que enviuvara de novo! Mas a princesa deu a mesma resposta anterior: Nem que fosse com o Monarca de todo o mundo!

O ultimo terço da sua vida decorreu mais sereno, se bem que não lhe faltaram desgostos e episodios excitantes como a desunião entre o exaltado e caprichoso D. Sebastião e a Rainha Regente, as expedições a Africa, [2] os casamentos das filhas de D. Duarte, os consorcios planeados e abortados do monarca com Margarida de Valois e mais princesas, que renovavam a recordação humilhante da sua propria sorte e a consciencia dos direitos pessoaes á coroa, se casasse. Em todo o caso, esse periodo foi de independencia, esplendor, actividade bemfazeja. Espoliada do seu patrimonio, estava de posse, parcialmente, das enormes riquezas da mãe; senhora de terras, capitaes, esplendidas baixellas d'ouro e prata, joias, pedras preciosas, tapeçarias, e outros mimos, por meio dos quaes a sua vivenda a par de Santos-o-Novo se transformou em uma residencia sumptuosissima, de verdadeira soberana. Em 1567 uma testemunha ocular insuspeita affirmava em letra redonda ter ella casa honrada em extreme de criados, damas e familiares. « E para se dizer que é igual a todalas rainhas da Europa lhe não falta mais que o nome de uma d'ellas. » [3]

Dispondo com inteira liberdade d'essa fortuna que havia sido causa de tantos gravames e receios, tantas humilhações e cubiças, tantas duvidas e indignidades da parte dos tutores e pretendentes, achava gosto em dispender á medida dos seus desejos e das suas inclinações, [4] encommendando obras d'arte, [5] subvencionando instituições de educação e beneficencia, mandando construir collegios, hospitaes, mosteiros, capellas e egrejas. [6] Seguindo o pendor natural do seu espirito, e fiel aos principios de rigida moral em que a haviam educado, recebeu de preferencia visitas de homens doutos em theologia e philosophia, S. Francisco de Borja, o cardeal Alexandrino, Frei Luis de Granada, Frei Francisco Foreiro, Frei Simão Coelho. Os escritos que esses e outros lhe dedicaram, tendiam naturalmente a levantar o seu espirito e robustecer a sua fé.

Morreu a 10 de Outubro de 1577, meses depois de ter exposto a sua ultima vontade com admiravel lucidez, de um modo digno, em linguagem clara e firme.[7] Sem queixas nem recriminações olhava

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  1. 82 Chronica de D. Manoel, Parte IV, cap. 68. No mesmo sentido se pronunciou Venturino, conforme já sabemos.
  2. 83 Ignoramos o que pensava sobre os planos de D. Sebastião. Apenas consta que, morrendo, contribuiu com 30:000 cruzados para a guerra contra os Infieis. A tradição falla de sonhos terrificantes da Infanta, cuja presaga mente prenunciou a catastrophe de Alcacer-Quebir.
  3. 84 Damião de Goes, Chronica de D. Manoel, Parte IV, cap. 68.
  4. 85 Ha instituições pias, fundadas ou favorecidas por ella durante a sua vida, não só em Lisboa, mas tambem em Evora e Villaviçosa e nos seus dominios em Viseu e Torres Vedras.
  5. 86 Sei apenas de uns pannos de ras (colgaduras de Tunes) que lhe haviam custado 20:000 cruzados, e que legou a D. Sebastião (Testamento § 35). Um Livro de Horas, ricamente illuminado e encadernado, que possuia, avaliado em 10 mil reales de plata (f. 108), era dadiva da mãe que o mandara fazer em Flandres.
  6. 87 A maior parte das instituições, fundadas pela Infanta, foi criada tarde, por decisão testamentaria. No respectivo documento reconhece-se certa magoa por não ter distribuido, em vida, com sufficiente largueza e desprendimento os bens de que dispunha — escrupulos sem duvida de uma alma torturada. Eis o que diz: «assi para descarga de mi alma como para disponer de los bienes que el Señor me dio en cosas de su servicio, porque ya que biviendo en esta vida con ellos no le servi como deviera, por lo menos despues de mi muerte se empleen y dispendan todos en su servicio.» Testamento § 1.
  7. 88 São desoladoramente significativas as palavras com que a Infanta pede aos ultimos sobreviventes da dynastia que teniendo respeto al grande provecho que a la corona destos reynos recrecio de yo nunca pretender otro modo de pagamento y satisfacion del patrimonio que el Rey mi padre me dexo que la que tuve», tomassem a peito obrigar os testamenteiros a cumprir inteiramente com muita diligencia as suas disposições, perguntando-lhe muitas vezes se o faziam, e mandando saber em segredo, se com efeito o executavam. Mas D. Sebastião morreu ao cabo de dez meses. D. Catharina havia-o precedido. D. Henrique lhe seguiu de perto. E depois...