Antes, porém, de considerarmos a produção artística autônoma (e, como consequência, o hermetismo) como simples reação que levaria a um encastelamento, em última análise, cínico - problema, aliás, que atormenta Bourdieu ao escrever sobre Mallarmé (1996, p. 308-311) - e necessário perguntar: seria uma ilusão de um grupo suficiente para sustentar mais de um século de arte modernista? É claro que o elitismo (no sentido de elite que detém um capital cultural) constitui parte de sua natureza, e a hipocrisia (cega ou não) dessa posição foi largamente denunciada não só por Bourdieu, mas por Edgar Wind em um livro interessantemente furioso (WIND, 1985). Entretanto, e inegável que a permanência do hermetismo como recurso não é seta que aponte para um lado só.

Nesse sentido, é de muito valor a curta conferência “A psicanálise e a história da arte” de Gombrich. Devido provavelmente ao contexto da enunciação (a palestra para psicanalistas), a pergunta de Gombrich é diferente: por que “achamos repulsivo aquilo que oferece uma satisfação óbvia demais, infantil demais” (GOMBRICH, 1999, p. 39-40)? Para Gombrich, a evolução histórica (que não pode ser lida simplesmente como progresso positivo) da arte levaria a uma nova forma de apreciação artística, em que o Impressionismo aparece como “divisor de águas entre dois modos de satisfação” (GOMBRICH, 1999, p. 42). Trata-se de uma reposição do conceito de arte que, ainda que possa e deva ter raízes nas condições históricas sustentadas por Bourdieu, aparece como uma conquista de ordem psicológica, em que a dificuldade tem compensações psíquicas (GONBRICH, 1999, p. 43).

A não facilitação do discurso, a dificuldade em integrar elementos fragmentários que não se referem a uma tradição em que x é igual a y, trazem um prazer muito moderno, construído na “interação entre expectativa e observação” (GOMBRICH, 1986, p. 51) que fundamenta a existência de toda a arte segundo Arte e ilusão (GOMBRICH, 1986). A participação, nossa capacidade “de reconhecer identidades através das variações da diferença, de “dar o desconto, por condições que se alteraram [...]” (GONBRICH, 1986, p. 45), e não só a essência da arte, como a base sobre a qual trabalha o hermetismo. Afinal, “cada vez que nos vemos diante de um tipo de transposição alheio à nossa experiência, há um breve momento de choque e um período de ajustamento - mas é um ajustamento para o qual existe um mecanismo em nós” (GOMBRICH, 1986, p. 45).

É nesta linha que se pretende ler o hermetismo da “poesia da poesia”, em uma análise comparativa entre Stéphane Mallarmé e Wallace Stevens: considerando a diversidade dos dois contextos, mas tendo sempre em mente que a principal influência do primeiro sobre o segundo é o significado fugaz que brilha ao longo do prazer do jogo.

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Anu. Lit., Florianópolis, v.21, n. 1, p. 92-113, 2016.1SSNe 2175-7917