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sêdes, leito de frescura da ninfa adormecida, translucida neblina das rendas que a vestem; fonte que discorre em lágrimas as saudades dum amor distante...

É esta Natureza que o Poeta tem de conquistar para a alma, é esta natureza que a Pátria tem de desvendar para o mundo.

Viajar é compreender: por ignotos rumos procurar e levar companhia aos seres e às cousas da distância, alargar, dilatar a alma para além dos horizontes, ampliando o convívio, contactando por maior superficie a grande zona do Mistério.

Ao partir para a viagem, acorrem tôdas as vozes da tranquilidade doméstica, demovendo e comovendo, tentando prender o homem à firmeza das ligações criadas, temendo a deslialdade e o esquecimento.

Há vozes de egoísmo e de preguiça, mas há tambem vozes proféticas que acusam a nossa vontade pecaminosa de não ir em busca de novas amizades, mas de ambições e maiores egoísmos.

Uma noite, era eu ainda colegial, senti, olhando da sala de estudo o côncavo firmamento estrelado, a atracção dum astro distante, e a minha alma infantil partiu súbitamente ao chamamento da distância; de repente um frio de isolamento, de abandono, me fez regressar instantaneamente ao calor e ao abrigo dos homens, que, embora pouco carinhoso, me falava, era meu, era convívio, conhecimento, mútuo amparo.

Jamais se apagou da minha memória essa sensação única, que hoje suponho o primeiro e mais perfeito contacto do meu ser com o Mistério.

Tambem, ao partir, o Velho do Restelo virá... E à despedida, há de dizer egoísmos, mas há de tambem prevenir os egoísmos, as ambições e as cubiças para que não aumentem com o tamanho dos mundos que lhes vão ser dados.

E o Velho sabe que a Viagem, a Epopeia, é uma obra prometaica, de «fogo de altos desejos que a movera».