casados, extinta a lua de mel, não se extinguiu o amor, que aliás nunca fora violento, senão pacífico, moderado e igual. Mas a conveniência deu lugar a novas descobertas. Camila, dizia um dia o marido, tem um gato no cérebro. Explicava ele deste modo as alternativas de carícia e arreganho da mulher, a indolência das idéias, a irritação fácil e a fácil docilidade.

Informada da história de Silvestre, Camila tratou-o com a mesma simpatia do marido, disposta como ele, a deixar que o gênio do jovem artista se desenvolvesse em plena liberdade. A figura de Silvestre fez ainda aumentar o interesse que sua história despertara nas duas almas sensíveis. Aquela palidez poética, o profundo e rutilante dos olhos, o véu de melancolia com que ele parecia esconder-se às vistas do mundo, mas através do qual se distinguia o traço da vontade e da perseverança, o próprio acanhamento das maneiras, faziam dele uma criatura interessante e original. Não lhe era preciso arrombar a porta dos corações; eles a abririam por si.

Era, pois, a vida de Silvestre a mais deliciosa coisa do mundo: trabalhava de manhã no escritório; de tarde e antes do almoço pertencia ao estudo; os domingos eram todos seus. Fechava-se para trabalhar à vontade. Mais de uma vez, Luís Borges pediu-lhe para ver os trabalhos; ele recusava-o sempre. Quando cansava, encostava-se à janela e esquecia-se a contemplar o mar e o céu. O ideal fundia-se no infinito; o artista ficava só com a sua criação.

Um dia, voltando do escritório, achou aberta a porta de seu aposento. Junto da janela viu Camila de pé, a contemplar um desenho, uma cabeça de Harpia, copiado de um modelo acadêmico. Antes de saber o que era, Silvestre correu agitado para a moça.

— Não tenha medo, disse esta; eu sou pessoa de segredo. Estava aqui admirando a sua inspiração. É magnífica!

Silvestre estendeu a mão para pegar no desenho.

— Não vale a pena disse ele; são esboços...

— Ciumento!

Camila proferiu esta palavra com tanta graça, que era impossível resistir-lhe; Silvestre esperou que ela acabasse o exame.

— Dá-me este! disse ela.

— Não posso; dar-lhe-ei outro melhor.

— Deixe ver.

— Mais tarde.

— Mentiroso!