JORNAL DAS FAMILIAS
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a soleira da porta. D’alli para dentro não era já o mundo; era um lugar de penitencia e de trabalho, onde nenhum olhar estranho podia penetrar; e se nem o olhar, muito menos o pé.

Duas creaturas unicas vivião alli, n’aquelle ermo, contentes uma da outra, vivendo uma pela outra, alliadas ambas no serviço de um juramento de honra, de um dever de consciencia: o pai e a filha.

A filha estava no verdor dos annos; vinte contava; vinte flôres a julgar pela belleza e pela graça que a distinguião; vinte lagrimas a julgar pela tristeza e pela resignação que de toda a sua figura ressumbrava.

Triste e resignada, como era, tinha no rosto impressa a consciencia de uma missão que desempenhava; a coragem de um dever que cumpria. O trabalho ainda não pudera murchar a flôr da belleza nem diminuir-lhe a exuberancia da vida; mas via-se que o olhar d’ella reproduzia um cuidado exclusivo, e que, n’esse cuidado, deixava correr os dias sem se lhe dar nem da vida nem da belleza.

Porque?

Esta pergunta de natural curiosidade e legitima admiração era a que sempre fazia um poeta, não um poeta moço, mas um poeta velho, um poeta de cincoenta annos, vizinho d’aquella familia singular.

Não menos que aos outros, fizera impressão ao poeta aquella existencia solitaria, silenciosa, propria talvez de Deos, mas com certeza arredada do mundo.

O poeta não era menos solitario que os dous, e para isso era poeta velho; isto é, tinha o direito de conversar com o mundo de Deos como poeta, e tinha o dever de conversar o menos possivel com o mundo dos homens, como velho. Na idade a que chegara pôde conservar o viço da impressão e o desgosto das cousas mundanas; fôra um dos enteados da gloria, não encontrando para os auspicios de sua musa mais do que um écho vão e negativo. Isolou-se, em vez de fallar no mundo com a lingua que Deos lhe dera, voltou-se para Deos, para dizer, como David: «Andei errante como ovelha que se desgarrou: busca o teu servo, porque me não esqueci dos teus mandamentos.»

Tinha dous livros: a Biblia e Tasso; dous amigos: um criado e um cão. O criado chamava-se Eloi; Diogenes chamava-se o cão, que era a terceira pessoa d’aquella trindade solitaria.

Muito tempo, mezes, annos, vivêrão estas duas familias, mettidas no seu isolamento, sem se conhecerem, sem se fallarem, vizinhas uma de outra, ambas parecendo tão proprias para formar uma só.

O hortelão sahia poucas vezes; trabalhava desde a alva até o occaso, ao lado da filha, que igualmente trabalhava nas suas obras de costura. Quando acon-}