JORNAL DAS FAMILIAS
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Ora, uma tarde, em que ambos se achavão juntos, o poeta David dirigiu a Vicente estas palavras:

— Meu amigo, quero merecer de ti uma prova de confiança.

— Qual?

— Não cuide que a sua existencia, tão separada do mundo como a minha, deixe de me ter feito impressão. Já lhe disse em poucas palavras como, tendo perdido as minhas illusões litterarias, e, o que valia mais! tendo perdido um anjo que Deos me deparou por mulher, vim viver, n’este cantinho, disposto a não pedir nem dar nada aos homens. Se alguma cousa me ficou ainda por contar, é esta da natureza d’aquellas que a memoria e o coração nem procurão conservar. D’essas não peço que me contes, se as tens; mas d’aquillo que é licito saber, declaro que teria desejo de que me communicasses, na plena confiança do coração. És capaz?

— Oh! não vale a pena!

— Não é possivel; alguma cousa ha na tua vida que merece a atenção de quem sabe olhar para estas cousas...

— Affirmo-lhe que...

— É escusado negar. E porque negar? Se não tens confiança, dize logo. É melhor entre velhos. Entre velhos! Se ha alguma occasião em que duas almas puras devem comunicar as desillusões do passado e as crenças do futuro... o futuro de além-tumulo, é agora; é quando, chegados ao cume da montanha, deitamos um ultimo olhar para o caminho que subímos e fixamos tranquillamente o abysmo que vamos caminhar mais rapidamente.

— Pois sim: essa confiança de que fallas, não te nego que sinto por ti. É verdade. O que te vou contar ainda ninguem o ouvio de minha boca. És a primeira pessoa. Quero até que a tua approvação, se eu a tiver, seja uma animação para o que ainda tenho de lutar.

— Lutar!

— É verdade. E muito. Mas não antecipemos nada. Hoje não póde ser.

— Quando?

— Domingo.

— Que dia é hoje?

— Sexta-feira.

— Pois bem; domingo.

— Sem falta. É dia livre.

Separárão-se os dous.

*  *

No domingo, com effeito, reunírão-se os dous amigos em casa de David, e