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— «Romeiro não tomeis coita
Por quem se não quer coitar:
Do que fui ja me não lembro,
O que sou não me é dezar.

«Deus tera dó da minha alma,
Que meu não foi o peccar;
E a esse traidor Ramiro
As contas lhe hade tomar.»

— «Pois não espereis, senhora,
Por Deus que póde tardar:
Dom Ramiro aqui o tendes,
Mandae-o ja castigar.»

Em pé está Dom Ramiro,
Ja não ha que disfarçar:
Aquellas barbas tam brancas
Cahiram de um impuxar;

O bordão e a esclavina
A terra foram parar:
Não ha ver mais gentilezas
De meneio e de trajar.

Quem viu olhos como aquelles
Com que o ella está a mirar!
Quem passou ja transes d'alma
Como ella está a passar?

Um tremor que não é mêdo,
Um surriso de infiar,
Vergonha que não é pejo,
Faces que ardem sem corar…

Tudo isso tem no semblante,
Tudo lhe está a assomar
Como ondas que vão e véem
Na travessia do mar.

A vingança é o prazer do homem;
Da mulher, é seu manjar:
Assim perdoa elle e vive,
Ella não — que era acabar.

Vingar-se foi o primeiro
E o derradeiro pensar
Que, entre tantos pensamentos,
Em Gaia estão a pullar:

Logo depois a vaidade,
O gôsto de triumphar
N'um coração que foi seu,
Que seu lhe torna a voltar.

E o rei moiro estava longe
C'os seus no monte a caçar,
Ella so n'aquella tôrre…
Prudencia e dissimular!

Abre a bôcca a um surriso
Doce e triste — de matar!
Tempéra a chamma dos olhos,
Abafa-a por mais queimar.

Poz na voz aquelle incanto
Que — ou minta ou não, é fatal.
E, com o inferno no seio,
Falla o ceo no seu fallar.

Ja os amargos queixumes
Se imbrandecem no chorar,
E em sua propria justiça
Com arte finge affrouxar.

Protesta a bôcca a verdade:
«Que não hade perdoar…»
Mas a verdade dos labios
Os olhos querem negar.

De joelhos Dom Ramiro
Alli se estava a humilhar,
Supplíca, roga, promette…
Ella parece hesitar.

Senão quando uma bozina
Se ouviu ao longe tocar…
A rainha mal podia
O seu prazer disfarçar: