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Apesar de ambição de ser completo[1], o ordenamento jurídico inevitavelmente contém lacunas. Como é de se imaginar, o art. 8º da LDA não trata diretamente de todos os casos possíveis nos quais não é possível atribuir direitos autorais. Por isso, cada vez mais são comuns situações que geram grande incerteza a respeito da possibilidade de proteção autoral a determinada obra. Trataremos de duas situações que poderiam facilmente figurar entre os incisos do art. 8º.

No n. 45 da Revista Piauí (junho de 2010), o cineasta Charly Braun narrou as agruras por que vinha passando a fim de terminar seu primeiro longa-metragem. Uma das dificuldades era conseguir usar, na edição de som, o grito do taxan, um determinado tipo de pássaro pouco comum que, segundo o cineasta, pode ser definido como um “peru selvagem”. Como a gravação do grito do pássaro seria praticamente inviável, Charly Braun decidiu usar um som pré-gravado. Segundo o diretor[2]:

 

Telefono para Dalgas Frisch. Ele é um grande conhecedor de aves e preciso que ele libere o direito de uso do grito do taxan. Apenas Dalgas tem essa gravação, e ele é conhecido no cinema por processar (e ganhar) de cineastas que não o consultam (e não pagam) pelo uso de suas gravações aviárias. Muito amável, ele libera em troca de 100 reais.

 

Em breve pesquisa na Internet, verifica-se que Dalgas Frisch mantém website (http:// www.agenciawld.com.br/dalgas/home/index.htm) onde podem ser adquiridos CDs com a gravação de cantos de diversas aves. Estariam essas gravações protegidas nos termos da LDA?

O canto dos pássaros certamente não é protegido. O canto dos pássaros pertence a todos, não é passível de apropriação por quem quer que seja. O fato de Dalgas Frisch ter gravado o canto de diversos pássaros e com isso produzido um CD confere a ele não mais do que um direito pela compilação, um direito à base de dados, ainda que não possa conferir proteção a cada um dos dados que a compõem. Assim, existe um direito autoral nos termos do art. 7º, XIII, da LDA, pelo CD, mas não pelo canto de cada um dos pássaros, individualmente considerados.

Haveria, igualmente, um direito sobre o fonograma? Entendemos que não. Da mesma forma que não existe um direito à edição de livro que contenha um texto em domínio público nem é passível de proteção o sinal do radiodifusor que transmite obra em domínio público, não seria possível conferir abrigo ao fonograma cujo conteúdo é, na íntegra, alheio



  1. 179
  2. 180

179 Segundo Bobbio, “um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema. Para dar uma definição mais técnica de completude, podemos dizer que um ordenamento é completo quando jamais se verifica o caso de que a ele não se podem demonstrar pertencentes nem uma certa norma nem a norma contraditória. Especificando melhor, a incompletude consiste no fato de que o sistema não compreende nem a norma que proíbe um certo comportamento nem a norma que o permite. De fato, se se pode demonstrar que nem a proibição nem a permissão de um certo comportamento são dedutíveis do sistema, da forma como foi colocado, é preciso dizer que o sistema é incompleto e que o ordenamento jurídico tem uma lacuna”. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, 10ª ed. Brasília: ed. Universidade de Brasília, 1999; p. 115.

180 BRAUN, Charly. Se não Melhorar, Talvez eu Vá Dirigir um Táxi. Revista Piauí, ed. 45. Rio de Janeiro, junho de 2010.