boa-fé de uns e o trabalho intelectual de outros, trazia uma grande admiração pelo vizinho. O que ainda lhe restava da primitiva inveja transformou-se nesse instante num entusiasmo ilimitado e cego.
— É um filho da mãe! resmungava ele pela rua, em caminho do seu armazém. É de muita força! Pena é estar metido com a peste daquela crioula! Nem sei como um homem tão esperto caiu em semelhante asneira!
Só lá pelas dez e tanto da noite foi que João Romão, depois de certificar-se de que Bertoleza ferrara num sono de pedra, resolveu dar balanço às garrafas de Libório. O diabo é que ele também quase que não se agüentava nas pernas e sentia os olhos a fecharem-se-lhe de cansaço. Mas não podia sossegar sem saber quanto ao certo apanhara do avarento.
Acendeu uma vela, foi buscar a imunda e preciosa trouxa, e carregou com esta para a casa de pasto ao lado da cozinha.
Depôs tudo sobre uma das mesas, assentou-se, e principiou a tarefa. Tomou a primeira garrafa, tentou despejá-la, batendo-lhe no fundo; foi-lhe, porém, necessário extrair as notas, uma por uma, porque estavam muito socadas e peganhentas de bolor. À proporção que as fisgava, ia logo as desenrolando e estendendo cuidadosamente em maço, depois de secar-lhes a umidade no calor das mãos e da vela. E o prazer que ele desfrutava neste serviço punha-lhe em jogo todos os sentidos e afugentava-lhe o sono e as fadigas. Mas, ao passar à segunda garrafa, sofreu uma dolorosa decepção: quase todas as cédulas estavam já prescritas