Página:Obras completas de Luis de Camões III (1843).djvu/175

176


Aquelle parecer, que he infinito
Para se comprender d’engenho humano;
O qual offendo em quanto tenho dito;

Tanto a inflamar-me vem d’hum doce engano,
E tanto a engrandecer-me a phantasia,
Que não vi maior glória que meu dano.

Oh bem-aventurado seja o dia
Em que tomei tão doce pensamento,
Que de todos os outros me desvia!

E bem-aventurado o soffrimento
Que soube ser capaz de tanta pena,
Vendo que o foi da causa o entendimento!

Faça-me quem me mata, o mal que ordena,
Trate-me com enganos, desamores;
Qu’então me salva, quando me condena.

E se de tão suaves desfavores
Penando vive hum’alma consumida,
Oh que doce penar! que doces dores!

E se huma condição endurecida
Tambem me nega a morte por meu dano,
Oh que doce morrer! que doce vida!

E se me mostra hum gesto lindo humano,
Como que de meu mal culpada se acha,
Oh que doce mentir! que doce engano!

E s’em querer-lhe tanto ponho tacha,
Mostrando refrear o pensamento,
Oh que doce fingir! que doce cacha!

Assi que ponho ja no soffrimento
A parte principal de minha glória,
Tomando por melhor todo tormento.

Se sinto tanto bem só co’a memoria