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O docto Areopagita exclama e teme?

Oh summo Deos! tu mesmo te condenas,
Por o mal em qu’eu só sou o culpado,
A tamanhas affrontas, tantas penas?

Por mi, Senhor, no mundo reputado
Por falso, e violador da sacra Lei?
A fama a ti se põe do meu peccado?

Eu, Senhor, sou ladrão, tu justo Rei.
Pois como entre ladrões eu não padeço?
A pena a ti se dá do qu’eu errei?

Eu servo sem valor, tu immenso preço,
Em preço vil te pões, por me tirares
Do captiveiro eterno que mereço?

Eu por perder-te, e tu por me ganhares
Te dás aos soltos homens, que te vendem,
Só para os homens presos resgatares?

A ti, que as almas sóltas, a ti prendem?
A ti summo Juiz, ante Juizes
Te accusão por o error dos que te offendem?

Chamão-te malfeitor; não contradizes:
Sendo tu dos Prophetas a certeza,
Dizem que quem te fere prophetizes.

Rim-se de ti; tu choras a crueza
Que sôbre elles virá: a gente dura,
Por quem tu vens ao mundo, te despreza.

O teu rosto, de cuja formosura
Se veste o ceo e o sol resplandecente,
Diante quem pasmada está a Natura,

Com cruas bofetadas da vil gente,
De precioso sangue está banhado,
Cuspido, atropellado cruelmente.