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SONETOS.


CXLVI.

Quando a suprema dor muito me aperta,
Se digo que desejo esquecimento,
He fôrça que se faz ao pensamento,
De que a vontade livre desconcerta.

Assi de êrro tão grave me desperta
A luz do bem regido entendimento,
Que mostra ser engano, ou fingimento,
Dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa propria imagem, que na mente
Me representa o bem de que careço,
Faz-mo de hum certo modo ser presente.

Ditosa he, logo, a pena que padeço,
Pois que da causa della em mi se sente
Hum bem que, inda sem ver-vos, reconheço.



CXLVII.

Na margem de hum ribeiro, que fendia
Com liquido crystal hum verde prado,
O triste pastor Liso debruçado
Sôbre o tronco de hum freixo assi dizia:

Ah Natercia cruel! quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei de penar desenganado,
Enganado de ti viver queria.

Que foi de aquella fé que tu me déste?
D'aquelle puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?

Quando esses olhos teus n'outro puzeste,
Como te não lembrou que me juraste
Por toda a sua luz que eras só minha?