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XXXVI
VIDA

Fazia então o principal ornamento do paço uma Dama, illustre por nascimento, e mais ainda por sua rara belleza, Dona Catharina de Ataide, que estava destinada a ser Laura de maior Petrarca. Vio-a Luis de Camões em um templo, que dos Sonetos 77 e 123 se infere ser o das Chagas; e o mesmo foi vê-la, que ficar perdido de amores. Des de então não soube mais parte de si; e ufano de se ver vencido de tão peregrina formosura, divinamente inspirado, compoz a maravilhosa Canção 7.ª; e como quem desejava que este passo, o mais notavel da sua vida, ficasse dignamente celebrado; com ser aquella Canção uma das mais sublimes producções do espirito humano, inda não satisfeito della, a procurou reformar na 8.ª: mas, não sendo possivel subir-se a mais, uma e outra sahírão tão iguaes, que não he possivel saber-se qual dellas seja melhor, ou a qual dava o poeta a preferencia. Cansa-se Faria e Sousa em nos provar que estes amores erão puramente Platonicos; mas disso não ficamos por fiadores, porque o poeta rara vez se afastou do natural; e se usava desta lingoagem, era para melhor insinuar-se a fim de obter seu intento, porque o lascivo desejo, que manifesta na Canção 15 onde diz:

Des que com gentil arte
Vestís de flores bellas
A terra, que tocais co'a bella planta,
Quantas vezes com vê-las,
Quiz n'uma dessas flores transformar-me!
Porque vendo pisar-me
Desse candido pe, que a neve espanta,
Póde ser que na flor mudado fòra
Que deo a Juno irada a linda Flora.