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nuntius antiquus

Belo Horizonte, v. X, n. 2, jul.-dez. 2014
ISSN: 2179-7064 (impresso) - 1983-3636 (online)

[39] Cavou poços nas encostas do monte,
Cruzou o mar, o vasto oceano, até o sol nascente,
[41] Palmilhou os quatro cantos, em busca da vida,
Chegou, por sua força, ao remoto Uta-napíshti,
[43] Repôs os templos arrasados pelo dilúvio,
Instituiu ritos para toda a humanidade.

[45] Quem há que a ele se iguale em realeza
E como Gilgámesh diga: este sou eu, o rei?*
[47] A Gilgámesh, quando nasceu, renome lhe deram:*
Dois terços ele é um deus, um terço é humano.*


Assim, se a viagem até Uta-napíshti tinha como objetivo vencer a morte, inclusive de uma perspectiva marcadamente individual, já que não se tratava de conquistar a imortalidade para toda a humanidade, mas apenas para si, teve esta consequência um tanto inesperada: a aquisição de um saber que permite ao herói a reposição daquilo que, na esfera do serviço devido aos deuses, o dilúvio havia apagado ou, pelo menos, danificado.

Contra o que considera Silva Castillo, 2000, p. 14, parece que isso justifica plenamente a narrativa do dilúvio feita por Uta-napíshti, de que decorre o conhecimento referido já nos v. 7-8: ele viu o secreto, descobriu o coberto, trouxe e ensinou algo “que antes do dilúvio era”, o que não parece ser outra coisa que os templos e os ritos.

[Versos 45-46] Esses versos apresentam dificuldades de leitura, que GBGE, p. 785, resolve pelo acréscimo do pronome ša (que), com base em inscrição que constitui variante da fórmula do v. 45, lição e entendimento que sigo na tradução (com o que concorda também SEG, p. 92).

[Verso 47] São os deuses que impõem (nabû) um nome (šumu) ao rei, este nome já definindo sua glória. SEG, p. 111, chama a atenção para a existência de outro verbo homófono em acádio (nabû ou nebû) com o significado de “brilhar”, anotando que “provavelmente o texto joga com os dois significados: ‘Gilgámesh’ é o nome imposto e esse nome é, além do mais, brilhante, glorioso”. Na tradução optei por “renome” para sugerir tanto a imposição do nome, quanto seu brilho.

[Verso 48] Essa é a expressão mais clara do caráter sobre-humano de Gilgámesh (“dois terços ele é deus, um terço é humano”). Esse dado é de enorme importância para a questão da imortalidade: ao fim e ao cabo, o que o herói aprenderá, depois de todos os trabalhos, é que ter dois terços de natureza divina não faz com que possa escapar da morte.

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