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BRANDÃO, Jacyntho Lins. Sîn-lēqi-unninni..., p. 125-160

[33] Margem firme, abrigo da tropa,
Corrente furiosa que destroça baluartes de pedra.*
[35] Amado touro de Lugalbanda, Gilgámesh perfeito em força,*
Cria da sublime vaca, a vaca selvagem Nínsun.*

[37] Alto é Gilgámesh, perfeito, terrível:*
Abriu passagens nas montanhas,


[Verso 33-34] O termo kibru(m) designa a “margem” de um rio, de um córrego ou do mar, no sentido de um lugar firme, onde se pode estar a salvo. Cf. GBGE, p. 783, ainda que em textos literários não seja comum o uso da margem de um rio como imagem de proteção, percebe-se esse sentido na composição de nomes próprios como Ilī-kibrī (Meu deus é minha margem) e Kibrī-Dagān (Minha margem é Dagān). Considerando-se o imaginário mesopotâmico relativo a inundações, a figura ganha em significação. Note-se a antítese com a metáfora seguinte: Gilgámesh é, por um lado, a “margem firme” que fornece salvação contra a enchente, ao mesmo tempo que, por outro, é a própria “corrente furiosa que destroça os baluartes de pedra”.

[Verso 35] Lugalbanda é considerado, na tradição dominante, o pai de Gilgámesh. Trata-se de um rei de Úruk divinizado, herói do poema sumério que leva seu nome. A expressão rīmu ša Lugalbanda dá margem, talvez intencionalmente, a vários entendimentos, tendo em vista a existência de termos homófonos ou quase: rīmu, “touro selvagem”; rīmu, “dom” dos deuses; rîmu, “amado” (cf. CDA, s. v.). Minha tradução (“amado touro”) buscou preservar a mescla de sentidos possível.

[Verso 36] A mãe de Gilgámesh é Nínsun, deusa tutelar de Gudea e Lagash, filha dos deuses Ánu e Uras. Seu epíteto é “Vaca-Selvagem” (rīmat). Na tabuinha da Universidade da Pensilvânia que atesta a versão babilônica antiga do poema, em vez Rimat-Ninsun (a vaca selvagem Nínsun), lê-se rīmtum ša supūri(m) Ninsunna (touro selvagem do redil de Nínsun), cf. GBGE, p. 783.

[Versos 37-44] A sequência desses versos resume os feitos de Gilgámesh numa ordem crescente: a) ações civilizatórias (abriu passagens nas montanhas e cavou poços); b) ações relacionadas com sua busca pelo sentido da vida ou pela imortalidade (cruzou o mar até o sol nascente, palmilhou os quatro cantos da terra, visitou Uta-napíshti); c) ações visando à recuperação da memória destruída pelo dilúvio (reinstalou os templos e instituiu os ritos). Note-se como os três níveis se relacionam e, especialmente, como o coroamento de todos os trabalhos heroicos se encontra nessa reposição dos templos nos lugares de onde o dilúvio os varreu e, em consequência, na instituição (talvez recuperação) dos ritos também perdidos.


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