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nuntius antiquus

Belo Horizonte, v. X, n. 2, jul.-dez. 2014
ISSN: 2179-7064 (impresso) - 1983-3636 (online)

Com o rebanho aperta-se na cacimba,
[177] Com os animais a água lhe alegra o coração.
E viu-o Shámhat, ao homem primevo,*
mancebo feroz do meio da estepe.*
[180] Este é ele, Shámhat! Oferece os seios!*
Abre teu púbis e que ele toque teu sexo!
[182] Não tenhas medo, toma seu alento!*


É ainda com base na focalização em Shámhat que sugere Worthington se deva resolver a aparente inconsistência contida no segundo hemistíquio, em que se afirma que o berço (ilittu) de Enkídu são os montes (šadu), quando se disse antes que ele foi criado na estepe (șēru, v. 102). Não se trata de uma informação (que Shámhat, aliás, não poderia ter), mas da verbalização da impressão que Enkídu lhe causa à primeira vista: um ser assim tão fora do comum e apenas meio humano só poderia ser filho das montanhas. Observe-se que a mesma expressão ilittašu šadumma volta a ocorrer em 2, 42, como parte do discurso direto dos pastores que contemplam, também pela primeira vez, Enkídu (ou seja, trata-se de uma nova focalização e da expressão do espanto da parte das personagens cujo foco então se adota).

[Verso 178] Com “homem primevo” traduzo lullâ amēla. O termo amēlu é sinônimo de awīlu e significa “homem”; lullû designa em geral o primeiro protótipo de homem criado pelos deuses (Bottéro traduz como “ébauche d’homme”, isto é, “rascunho de homem”). Como resume SEG, p. 113, nesta passagem lullû “parece corresponder a uma visão quase evolucionista da origem do homem; é um estado pré-humano, caracterizado pela selvageria e o zoomorfismo. Nos mitos de criação babilônicos, o lullû é o primeiro momento do ser pré-humano: um projeto que necessita de outros complementos para converter-se em ‘homem’”. A palavra é usada por Uta-napíshti em 10, 318, quando ele afirma a inelutabilidade da morte para o ser humano.

[Verso 179] O que traduzi por “mancebo feroz” é etla šaggāša, em que etlu(m) nomeia o “homem” por oposição a “mulher”, no sentido de “viril”, “homem jovem”, e šaggāšu(m) significa “assassino”, aplicado a pessoas, demônios etc. (cf. šagāšu(m), “matar”, “chacina”, e também “maltratar”). Ainda que se pudesse optar por traduzir a expressão literalmente (“mancebo assassino”, como faz GBGE, p. 549: “a murderous fellow”), trata-se naturalmente de imagem que visa a ressaltar a ferocidade de Enkídu, pois ele não é apresentado em nenhum momento matando pessoa ou animal (como um animal carnívoro), mas, pelo contrário, apenas alimentando-se de ervas, com as gazelas.

[Verso 180] A expressão que traduzi como “oferece os seios” é rumi kirimiki, o último termo, kirimmu, designando a dobra que se faz com os braços, especialmente


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