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BRANDÃO, Jacyntho Lins. Sîn-lēqi-unninni..., p. 125-160

O caçador e a meretriz de tocaia sentaram-se.*
[171] Um dia, um segundo dia no açude sentados ficaram;
Chegou o rebanho, bebeu no açude,
[173] Chegam os animais, a água lhes alegra o coração,
E também ele: Enkídu! Seu berço são os montes!*
[175] Com as gazelas ele come grama,


[Verso 169] No texto se lê ina eqela ša adanni, que traduzi por (“no lugar aprazado”). O sentido primeiro do termo adannu é temporal: “data”, “prazo”, podendo ser também usado em acepção espacial (a expressão eqel adanni significa “objetivo”). Com “lugar aprazado” busco preservar o jogo entre tempo e espaço.

[Verso 170] O termo que traduzi como “tocaia”, ušbu, é um hápax legómenon cujo sentido dá margem a dúvida (cf. GBGE, p. 795). Admite-se em geral que signifique “esconderijo”, “covil”.

[Verso 174] Este verso, u šu enkidu ilittašu šadumma, oferece alguma dificuldade de leitura, que leva George e Sanmartín a articularem o primeiro e o segundo hemistíquio através de um pronome relativo: “and also Enkidu himself, whose birthplace was the hills” (GBGE, p. 548); “y el mismísimo Enkidu, que tuvo a las colinas por cuna” (SEG, p. 100). O mesmo George (The Epic of Gilgamesh, p. 7) dispensa o relativo: “and Enkidu also, born in the uplands”. Minha tradução vai nesta última direção, procurando valorizar a organização paratática dos dois hemistíquios.

Deve-se levar em conta a sugestão de Worthington, 2011, p. 401-414, que propõe entender o verso desta maneira, “and... that one! Enkidu (lit. ‘one made by Enki’ or sim.). He is born of the mountains”, com base em dupla justificativa: a primeira, respeitar a sintaxe do original; a segunda, considerando as teorias narratológicas concernentes às técnicas de focalização, que essa espantada percepção de Enkídu deve ser atribuída a Shámhat, a qual o vê pela primeira vez. De modo mais ousado, defende ele que é a própria Shámhat quem nomeia Enkídu, o qual, vivendo na estepe, longe do convívio humano, careceria até então de nome próprio; de fato, a única ocorrência de seu nome até este ponto se encontrava no verso 103, devido ao narrador: “Na estepe a Enkídu ela criou, o guerreiro”, estando em causa a criação do herói por Arúru. É dessa perspectiva que o mesmo comentador recupera a suposta etimologia “feito por Enki” ou algo semelhante, justificando que, na verdade, se trata do grito de espanto de Shámhat. Esse mesmo espanto justificaria a forma um tanto assintática do verso.

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