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BRANDÃO, Jacyntho Lins. Sîn-lēqi-unninni..., p. 125-160


Encorpado de encantos todo o seu corpo,*
[238] Mais valentia e força que tu ele tem,
Insone de dia e de noite.

[240] Enkídu, abandona teus vícios,*
A Gilgámesh Shámash o ama,*
[242] Ánu, Énlil e Ea fizeram plena sua sabedoria:*


[Verso 237] O verso é zu-‘u-na k[u-u]z-ba ka-lu zu-um-ri-šu (literalmente, “cheia de atrativos toda a sua pessoa” ou “o seu corpo”), em que se observa a aliteração em “z” (precedido ou seguido de “u”), o que tentei sugerir com “encorpado... encantos... corpo”. O termo kuzbu(m), que traduzi por “encanto”, tem a conotação de “apelo sexual”, podendo nomear os “genitais femininos” e a “potência sexual” do homem (daí eu ter insistido no termo “corpo”).

[Verso 240] O que traduzi por “vício” é šērtu, “culpa”, “crime” e também a “punição”; pode significar ainda uma “ofensa” contra um rei ou um deus. Cf. SEG, p. 114, “parece que o texto sugere a necessidade de [Enkídu] apresentar-se diante de Gilgámesh num estado de pureza ritual, por tratar-se de um ser superior, régio e amado dos deuses”.

[Verso 241] Shámash (Šamaš) é o deus Sol (em sumério Utu), sob cuja especial proteção se colocava a primeira dinastia real de Úruk, que pretendia dele descender. De acordo com a lista de reis sumérios, Meski’ang-gasher era filho de Utu, tendo sido o senhor e rei no Eana durante 324 anos; foi sucedido por seu filho Enmerkar, o fundador de Úruk, que reinou 420 anos; sucedeu-o Lugalbanda, o pastor, cujo reinado durou 1.200 anos; em seguida veio Dumuzi, o pescador, que reinou 100 anos; então é a vez de Gilgámesh, filho de um fantasma (lil2-la2), senhor de Kulaba, que reinou 126 anos. A sucessão épica a essa paralela, presente sobretudo nos poemas dedicados a Enmerkar e Gilgámesh, apresenta-se assim: (a) Utu (o Sol) e Ninsumun (a Senhora Vaca Selvagem) geram (b) Enmerkar, o fundador de Úruk, marido de Inana, com a qual gera (c) Lugalbanda, filho de Enmerkar e também marido de Inana, de quem gera (d) Gilgámesh, filho de Lugalbanda, também marido de Inana, o construtor da muralha de Úruk.

Como assevera Woods, Sons of the Sun, p. 80, “a proeminência do deus Sol é um dos poucos temas básicos que dá coesão ao amplamente desconectado e heterogêneo grupo de poemas que toma os feitos legendários da primeira dinastia de Úruk como assunto. O patrocínio do deus Sol aos reis de Úruk nos textos literários é deveras destacável em vista das práticas cultuais no mundo real, pois, havendo escassas evidências de um culto devotado a esse deus em Uruk, apenas eles sugerem que tal divindade era objeto de especial veneração na cidade”.

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