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BRANDÃO, Jacyntho Lins. Sîn-lēqi-unninni..., p. 125-160


Os jovens acumulavam-se em volta dela,
[255] Como um bebê, como a um bebê beijavam-lhe os pés,*
A ela amei como esposa, por ela me excitei,*
[257] Peguei-a e deixei-a a teus pés


[Verso 255] Beijar os pés é sinal de respeito (cf. unassaqu šēpīšu, “beijavam seus pés”). Observe-se que a mesma expressão volta a aparecer em duas outras passagens do poema: a) na promessa que, em troca de seu amor, faz Ishtar a Gilgámesh em 6, 15: “o umbral e o trono beijarão teus pés” (sippū arattû linaššiqu šēpēka); b) nas homenagens fúnebres a Enkídu em 7, 143 e 8, 87, em que Gilgámesh afirma: “os príncipes da terra beijarão teus pés” (malkū ša qaqqari unaššaqū šēpēka). Sobre o caráter fúnebre dessa manifestação, inclusive na proposta de Ishtar, ver Abusch, Ishtar’s proposal and Gilgamesh’s refusal, p. 155-156: num ritual fúnebre neo-assírio (K. 164), o cadáver é posto numa cama, uma tocha contendo plantas aromáticas é acesa, queima-se cedro e os pés do morto são beijados (šēpē tanaššiq).

[Verso 256] Referências como as que se encontram neste verso sugerem que a amizade que está por vir entre Gilgámesh e Enkídu envolve relações sexuais, embora isso nunca fique explícito no poema.

A esse respeito, Renger, 1990, p. 77-78, com base na comparação entre Gilgámesh e Enkídu, Davi e Jônatas, Aquiles e Pátroclo, propõe os seguintes traços como característicos de tais pares de amigos: a) trata-se de uma “forte amizade entre duas e não mais que duas pessoas”, os dois sendo do sexo masculino e formando “não somente um par, mas um par relativamente isolado: os dois não se juntam jamais a um terceiro, não há rivais, não há outros pares nem relações com mulheres”; b) a relação, “sejam quais forem suas características sentimentais, sempre tem um foco externo (...) na realização de gloriosos feitos ou no cumprimento de finalidades políticas”; c) os pares apresentam uma “assimetria estrutural, que consiste numa distribuição desigual de precedência entre seus membros e num tratamento diferente dos mesmos na narrativa”, um deles aparecendo como mais importante que o outro: Aquiles com relação a Pátroclo, Davi em face de Jônatas, Gilgámesh diante de Enkídu.

No último caso, continua o mesmo autor (p. 81), “a afeição de Gilgámesh por seu amigo é descrita em termos apropriados para relações tanto com parentes, quanto com objetos de desejo sexual”. Enkídu é comumente chamado de “irmão” (ahu) de Gilgámesh, enquanto o sentimento deste pelo companheiro “é explicitamente modelado em termos de atração sexual” (como no presente caso dos sonhos premonitórios e, após a morte de Enkídu, no modo como Gilgámesh o pranteia como “uma viúva” e vela seu corpo como se fosse “uma noiva”). Conclui-se que

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