FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
ESTROPHE II


O primeiro dos tres espiritos


(Continuado do n.º 3)


Arrumar! Não havia nada que elles não fizessem ou que não podessem fazer estando presente o velho Fezziwig. Tudo se fez n'um minuto. Todos os objectos transportaveis foram tirados do seu lugar para não impedirem a passagem foi varrido; e burrifado o soalho, arranjados os lampiões; no fogão foi lançado um montão de carvão; e o armazem ficou transformado n'uma salla de baile tão linda, quente, commoda e aceiada, como os meus leitores desejariam ver em noite de inverno.

Entrou um tocador de rebeca com um livro de musica; subiu á alta escrivaninha, e arranjou uma orchestra, improvisando sons similhantes aos vagidos produzidos por incommodos do estomago. Entrou em seguida Mistress Fezziwig, toda ella um sorriso substancial. Vieram depois as tres meninas Fezziwigs radiantes e amaveis, e a traz d'ellas seis pretendentes cujos corações as ingratas espedaçavam, e depois entraram todos os rapazes e raparigas empregadas no trafêgo commercial da casa; depois a creada grave com o seu primo padeiro; depois o cosinheiro, com o amigo intimo de seu irmão, o fornecedor de leite; depois o aprendiz da loja fronteira, com apparencia de não ter bastante que comer em casa de seu amo, e procurando esconder-se atraz da creadinha da casa, duas portas abaixo, á qual estava mais que provado, que a ama puxára as orelhas. Assim entraram uns atraz dos outros; este com modos d'envergonhado, aquelle com ademanes de corajoso, e aquelle outro empurrando os convivas; finalmente entraram todos d'um modo ou d'outro, não importa como.

Romperam a dança vinte pares ao mesmo tempo dando as mãos e formando circulo; metade avançam, e metade retrogradam; ora estes se balanceam em cadencia, ora aquelles seguem o movimento geral; os pares velhos, não atinam com a dança, e continuamente se enganam; os rapazes e raparigas tratam de os desconcertar completamente e afinal termina tudo em confusão geral. Quando se chegou a este bello resultado, o velho Fezziwig bateu as palmas para fazer cessar a quadrilha e gritou «Bravo! muito bem!» e o da rebeca introduziu a sua avermelhada caraça dentro d'um cangirão de porter[1], alli collocado para esse mesmo fim. Mas tendo em pouca conta o repouso, quando reappareceu sahido do cangirão, apezar de ainda não estarem formados os pares, começou a tocar com tal furia, que fazia acreditar que o primeiro muzico fora levado para casa em padiola exhausto de forças, e elle viera para o desbancar ou então terminar com a vida.

Seguiram-se mais danças e joguinhos de prendas, e mais danças e um grande cake, e serviu-se vinho quente com noz muscada, e uma grande peça de roast-beef frio, e tortas de picado, e cerveja em abundancia. Mas o melhor do sarau ou da festa, foi depois de servido o roast-beef quando o da rebecca (fino mastim! palavra de honra, — homem dos diabos que sabia do seu officio melhor do que os senhores todos, ou eu!) começou a tocar o «Sir Roger de Coverley»! Agora o vereis! Ahi me salta para a frente o velho Fezziwig afim de dançar com a esposa. Collocaram-se na cabeceira da salla, e então é que foi o bonito! Tinham a dirigir vinte trez ou vinte quatro pares, com quem não se podia brincar; gente que queria dançar, e não sabia que coisa fosse o dar um passo!

Mas ainda que o numero dos pares fosse duplicado ou quadruplicado, o velho Fezziwig e sua cara metade haveriam-se bem com elles.

Se este não é um elogio de polpa, forneçam-me um melhor, que eu o usarei convenientemente. As canellas de Fezziwig refulgiam uma luz positiva; e brilhavam no meio da dança como duas luas. Appareciam e desappareciam como os fogos fatuos.

Quando o relogio bateu as onze, desfez-se este baile domestico. Os dois esposos Fezziwig foram tomar os seus logares, cada um encostado á hombreira da porta, e á medida que cada convidado masculino ou feminino se retirava, apertavam-lhe a mão com inequivocos signaes de agradecimento, e desejando-lhes boas festas. Quando todos se tinham retirado, á excepção dos dois apprendizes, a esses mesmos fizeram a mesma cerimonia. As vozes alegres foram-se extinguido pouco a pouco e os dois rapazes metteram-se na cama que era n'uma alcova do armazem.

Durante todo o tempo que durara a funcção Scrooge parecia um homem que perdera o juizo. A sua alma e o seu coração estavam n'aquelle lugar com o seu primeiro elle.

Reconhecia tudo, recordava-se de tudo, gosava tudo, e soffria a mais extraordinaria agitação. Foi tão somente quando os rostos radiantes de satisfação, do seu outro elle e de Dick tinham desapparecido de diante de seus olhos, que se recordou do Phantasma, e que teve a consciencia de que este ultimo o considerava attentamente, emquanto a aureola de luz refulgindo-lhe da cabeça, brilhava cada vez mais.

— Pouco basta, disse o Phantasma, para obrigar á gratidão desta pobre gente.

— Pouco! echoou Scrooge.

O Phantasma fez-lhe signal para que escutasse os dois apprendizes que soltavam enthusiasticos hurrahs! em louvor de Fezziwig, e acrescentou quando Scrooge prestou attenção:

— Pois não é assim? Não basta pouco? Fezziwig despendeu poucas libras do vosso dinheiro mortal; tres ou quatro talvez. É isto o que merece tantos elogios?

— Não é tanto assim, disse Scrooge tomando calor com a observação, e fallando como o Scrooge d'outr'ora, e não como o Scrooge de hoje. Não é assim, Espirito. Fezziwig tem o poder de nos tornar felizes ou infelizes, de tornar o nosso serviço ligeiro ou pesado, — um prazer ou uma tarefa.

Dizei muito embora que o seu poder consiste em palavras e olhares, em coisas tão ligeiras e insignificantes que é impossivel addicional-as e contal-as, mas que se segue então? A felicidade que nos faz gozar é tamanha, como se fosse á custa d'uma fortuna.

Sentiu o olhar do Espirito e fez pausa.

— Que tendes? perguntou o Espirito.


— Nada.

— Pareceis ter alguma coisa? insistiu o Espirito.

— Nada, disse Scrooge, nada. Desejava dizer agora uma palavra ou duas ao meu caixeiro. Nada mais.

O seu primeiro elle apagou as luzes á medida que elle reprimia este seu desejo; e Scrooge e o Espirito de novo se encontraram ao lado um do outro ao ar livre.

— O meu tempo está a findar, observou o Espirito. Depressa!

Estas palavras não eram dirigidas a Scrooge nem a alguem que elle podesse vêr, mas produziram um effeito immediato, porque de novo Scrooge viu-se a si proprio. Era mais velho agora; um homem na flor da idade. O seu rosto não tinha as feições duras e severas da maturidade; mas principiava a exhibir signaes dos cuidados e da avareza.

Havia no seu olhar um movimento avido, ardente e inquieto, demonstrando a paixão que n'elle ganhara raizes; e advinhava-se já onde iria projectar-se a sombra da arvore que ia crescendo.

Não estava só; achava-se sentado ao lado de uma linda menina trajando de luto, e em cujos olhos brotavam lagrimas, scintillando á luz projectada pelo Espirito do Natal passado.

— Pouco importa, dizia ella suavemente, pelo menos a ti. Um outro idolo veio substituir-me e se elle te poder alegrar e acarinhar no porvir como eu tentaria fazer, não tenho tanta razão para me affligir.

— Que idolo te substituiu? perguntou elle.

— O idolo do ouro!

— O mundo é assim, disse elle. Não ha nada que trate com mais dureza do que a indigencia; e não ha nada que tenha o poder de condemnar com tanta severidade, como o desejo das riquezas.

— Receias demasiado a opinião do mundo, respondeu com doçura a menina. Sacrificaste todas as tuas esperanças ao desejo de te collocares a coberto do despreso sordido do mundo. Tenho visto todas as tuas nobres aspirações desfolharem-se uma a uma até seres absorvido pela paixão dominante, o lucro. Não tenho razão no que digo?

— E d'ahi que se segue? Quando mesmo com o andar dos annos, eu cobrasse mais tino, que se seguia d'ahi? Não mudava com referencia a ti.

A menina meneou a cabeça.

— Pois estarei mudado a tal respeito?

— O nosso contracto é muito antigo. Firmamol-o quando ambos eramos pobres, e estavamos satisfeitos com a nossa sorte, aguardando o dia em que podessemos melhorar a nossa fortuna d'este mundo pela nossa paciente industria. Tu tens mudado demasiado. Quando juramos o nosso amor eras um outro homem.

— Eu então era uma creança, disse elle com impaciencia.

— A tua propria consciencia te diz que não eras o que és hoje. Eu sou a mesma. O que nos promettia felicidade quando tinhamos um só coração, é a fonte de todas as desgraças agora que possuimos dois. Não te direi quantas vezes e com quanta amargura tenho pensado n'isto! Basta que me recorde, para agora te restituir a tua palavra.

— Procurei eu alguma vez desquitar-me d'ella?...

— De palavras, não, nunca.

— Então, como?

— Mudando completamente; o teu genio já não é o mesmo; já não possues o espirito jovial d'outr'ora; a athmosphera que te rodeia é totalmente outra; a esperança, alvo da tua vida, é tambem outra. Finalmente, mudou tudo o que poderia tornar o meu amor d'algum valor a teus olhos. Se não existisse entre nós um contracto, disse a menina olhando-o com suavidade, mas com firmeza ao mesmo tempo, dize-me, virias hoje procurar a minha mão?... oh não!

A imagem de Scrooge, mau grado seu, pareceu curvar-se ante a justiça de tal supposição.

No entanto não quiz dar o seu braço a torcer e disse:

— Essa não é a tua opinião.

— Bem me aprouvera pensar d'outra forma, se podesse, respondeu ella. Deus o sabe! Para eu me haver convencido d'uma tal verdade, era necessario que ella fosse bem patente e irresistivel.

Mas se hoje ou amanhã fosses tão livre como hontem, poderia eu acreditar que escolheses para esposa uma rapariga sem dote — tu que nos teus momentos de confidencia para comigo, pesavas tudo na balança do interesse? ou, se me escolhesses, prevalecendo sobre os teus ruins principios a amisade para comigo, não tenho eu a convicção de que em breve se seguira o arrependimento por assim teres obrado? Restituo-te a tua palavra, de todo o coração, em nome do nosso antigo amor.

A imagem de Scrooge ia a falar, mas a menina com a cabeça voltada para o lado continuou:

— Talvez, quem sabe — a recordação do passado, faz-me quasi esperar que assim ha de ser — soffrerás por tal motivo. Mas em breve tempo, varrer-se-ha da tua memoria essa recordação, como um sonho, de que tiveste a felicidade de acordar a tempo. Oxalá que sejas feliz na vida que escolhete!

A menina deixou-o, e elles partiram.

— Espirito, disse Scrooge, não me faças vêr mais nada! Conduz-me a casa. Porque te deleitas em me atormentar?

— Uma sombra mais, exclamou o phantasma.

— Nada mais, exclamou Scrooge, nada mais. Não desejo vêr mais nada. Não me mostres mais.

Mas o inexoravel phantasma cingia-o entre os braços, e forçava-o a assistir á marcha dos acontecimentos.

(Continua.)

  1. Cerveja preta.