FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
(Continuado do n.º 6)


ESTROPHE III


O segundo dos tres espiritos


Scrooge obedeceu respeitosamente. O Espirito do Natal trajava um simples vestido, ou tunica de côr verde, e orlado de martha branca. Este vestido cahia tão negligentemente do corpo do Espectro, que o seu largo peito ficava a descoberto como desdenhando procurar occultar-se ou precaver-se por algum artificio. Os pés que se lhe viam distinctamente por debaixo das largas dobras da tunica estavam descalços; e não trazia na cabeça outro ornato alem d'uma corôa d'azevinho entrelaçada aqui e alli com pedacinhos de gelo. Os compridos caracóes do cabello ondeavam-lhe livremente; eram tão livres como a sua physionomia era franca, o seu olhar scintillante, a sua mão liberal, a sua voz sympathica, o seu porte desaffectado e o seu todo jovial. Pendia-lhe da cinta uma bainha de ferro de forma antiga, sem espada, e coberta de ferrugem.

— Nunca visteis antes de mim ninguem que se me assimilhasse? exclamou o Espirito.

— Nunca, respondeu Scrooge.

— Nunca andasteis com os membros mais novos da minha familia; quero dizer (porque sou muito novo) os meus irmãos mais velhos nascidos n'estes ultimos annos? proseguiu o Phantasma.

— Parece-me que não, disse Scrooge. Receio que não. Tendes tido muitos irmãos, Espirito?

— Mais de mil e oitocentos, disse o Phantasma.

— Que numerosa familia para sustentar! resmoneou Scrooge.

O Espirito do Presente Natal levantou-se.

— Espirito, disse Scrooge, submisso, conduzi-me onde vos aprouver. Fui obrigado a sahir mau grado meu, a noite passada, e recebi uma lição que começa a germinar seus fructos desde já. Se tendes a ensinar-me alguma coisa esta noite, deixai-me aproveitar bem da lição.

— Tocai na minha tunica.

Scrooge fez o que lhe recommendou o Espirito, agarrando-se-lhe á tunica com toda a força.

Azevinho, azinheira, bagas, hera, perus, patos, caça, aves, carne, leitões, choiriços, ostras, pasteis, puddings, frutas e punch, tudo desappareceu instantaneamente. O mesmo aconteceu á salla, fogão, mobilia, hora da noite; e acharam-se em manhã do dia de Natal, n'uma das ruas da City, onde o povo (por que o tempo estava demasiado frio) executava um genero de muzica barbaresco, mas com acompanhamento não de todo desagradavel, raspando a neve do passeio em frente dos seus domicilios, ou varrendo-a das goteiras, d'onde se despenhava á rua em pequenas cascatas artificiaes, com grande deleite dos garotos do bairro.

As fachadas das casas pareciam bastante negras, e as janellas ainda mais negras, em contraste com o alvejante lençol de neve espalhado sobre os telhados, e com a neve mais suja da rua, que fôra desfeita pelas rodas das carroagens, e carroças. O céo estava sombrio, e as ruas mais estreitas estavam envolvidas em um denso nevoeiro, metade derretido metade coalhado, cujas particulas mais pesadas cahiam n'um chuveiro d'atomos fuliginosos, como se todas as chaminés da Gran-Bretanha, por consenso unanime, tivessem pegado fogo, e estivessem ardendo com grande satisfação sua. Nada havia agradavel nem na apparencia da cidade, nem do clima, e todavia, reinava no exterior um ar de satisfação, que a atmosphera mais clara, e o sol mais brilhante do estio debalde se exforçariam em diffundir.

As pessoas atarefadas a varrer a neve nos telhados, pareciam alegres e de bom humor, e gritavam uns pelos outros, e de quando em quando atiravam a sua bollinha de neve — projectil muito menos inoffensivo que certos gracejos — fazendo grande ruido cordialmente quando ella acertava, e igualmente soltando estridentes gargalhadas quando errava o alvo.

As lojas dos gallinheiros conservavam-se ainda meias abertas, e as dos vendilhões de fructa brilhavam em todo o seu esplendor. Aqui viam-se grandes, e redontos cestos de castanhas, similhantes na forma aos colletes de velhos gastronomos, parecendo quasi prestes a cahirem na rua victimas da sua corpulencia apopletica; acolá magnificas e luxuosas cebolas d'Hispanha, fazendo recordar pelas suas arredondadas barrigas os frades seus patricios, e lançando olhares amorosos, do alto das prateleiras, ás raparigas que passavam. Não faltavam as peras e maçãs enfileiradas em appeteciveis pyramides; e os cachos d'uvas, que por benevolencia dos logistas, estavam pendurados no logar mais saliente, afim de que a agua crescesse na bocca aos transeuntes, e estes podessem d'esse modo refrescar-se gratuitamente. Havia tambem montes d'avellas, verdes e seccas, frazendo recordar, pela sua fragancia, os antigos passeios nos bosques, onde cada um tinha o prazer de se enterrar até ao joelho nas folhas estioladas; igualmente se divisavam os Biffins de Norfolk[1] fazendo sobresahir o amarello das laranjas e limões, e parecendo recommendar pelo seu volume e apparencia succulenta, que os levassem para casa em cartuxos de papel, afim de serem comidos depois do jantar. Os peixinhos doirados e prateados, expostos em vasos de cristal cheios d'agua no meio dos fructos escolhidos, apesar de pertencerem a uma raça bisonha e apathica, pareciam ter conhecimento de que alguma coisa extraordinaria se passava; e por essa razão iam e vinham com a bocca aberta, em signal de satisfação, e percorriam continuamente o seu pequeno universo.

E os tendeiros! os tendeiros, unicamente com meia porta aberta; mas que bella vista atravez das frestas!

Não era só o som alegre das conchas da balança batendo no mostrador, ou o ruido das thesouras cortando os cartuxos de papel, ou os perfumes do chá e do café de moka tão gratos ao olfacto, ou mesmo as passas tão bellas e tão abundantes, as amendoas tão brancas, os páos de canella tão compridos e tão direitos, as outras especiarias tão deliciosas, as fructas de doce tão bem feitas e tão cobertas d'assucar a ponto de fazerem estremecer os mais indifferentes espectadores; não, nem os figos succulentos e carnudos, nem as ameixas francezas córando de modestia nas cestinhas aprimoradamente talhadas, nem finalmente todas essas coisas maravilhosas ornadas para um dia tão solemne de festa; não... não era só isto digno de se ver... era necessario ver os freguezes tão apressados e tão avidos em realisarem as esperanças do dia, a ponto de irem de encontro uns aos outros á entrada da porta, amaçando os cestos das compras, esquecendo os embrulhos sobre o balcão, voltando atraz a buscal-os a toda a pressa, e commettendo mil faltas semelhantes no melhor humor possivel.

Bem depressa os sinos chamaram a boa gente á igreja ou á capella, e ahi vem todos, caminhando atravez das ruas com os seus melhores fatos, e com physionomias festivas. Ao mesmo tempo d'uma immensidade de ruas lateraes, viellas e bêcos sem nome, sahiu uma quantidade innumeravel de pessoas, levando os seus jantares a casa dos padeiros, para os metterem no forno. O aspecto d'essa pobre gente pareceu interessar muito o Espirito, porque se conservou ao lado de Scrooge, no limiar da porta de uma padaria, e arrancando a cobertura dos cestos que conduziam os jantares, lançava sobre estes incenço espargido da sua tocha. E na verdade era bem maravilhosa a tocha, porque uma ou duas vezes que se trocaram palavras de colera entre os conductores dos jantares, os quaes com a pressa se tinham pegado uns com os outros, o Epirito espargiu algumas gotas de agua sobre elles e a alegria d'aquella pobre gente reappareceu. Até chegaram a dizer que era uma vergonha altercarem em dia de Natal. E assim era, meu Deus, assim era!

Em tempo determinado os sinos cessaram de tocar e as padarias fecharam-se; e todavia reinava um antegosto de todos os jantares, e do bom cosinhado, no vapor humido que degelava por cima de cada forno, cujo pavimento fumegava como se os tijollos tambem estivessem a cozer.

— Ha algum sabor particular nos pingos que espargis da vossa tocha? perguntou Scrooge.

— Ha certamente; é o meu sabor.

— Póde-se applicar no dia de hoje a qualquer especie de jantar? perguntou Scrooge.

— A qualquer jantar offerecido do coração e principalmente aos dos mais necessitados.

— Porque a esses mais do que a outros? perguntou Scrooge.

— Pela razão de que precisam mais d'elle.

— Espirito, disse Scrooge depois de pensar um momento, admiro que vós, d'entre todos os seres que povoam os mundos que nos circundam, desejasseis privar esta pobre gente das occasiões que se lhes offerecem de gosarem um prazer innocente.

— Eu! exclamou o Espirito.

— Sim vós, visto que os privaes dos meios de jantarem cada oito dias, muitas vezes o unico dia em que se possa dizer que jantam, disse Scrooge. Não é verdade?

— Eu! exclamou o Espirito.

— Não sois vós que fazeis fechar estes fornos no setimo dia? disse Scrooge. E não vem a ser a mesma coisa.

— Eu!... querer tal coisa!...

— Perdoai-me se me engano. Faz-se isso em vosso nome ou em nome de vossa familia, disse Scrooge.

— Ha muitos homens sobre esta terra que habitaes, disse o Espirito, que pretendem conhecer-nos, e que em nosso nome praticam todas as más acções filhas das ruins paixões, como são o orgulho, o odio, a inveja, a hypocrisia e o egoismo; mas são-nos tão estranhos e a toda a nossa familia, como se nunca tivessem vivido. Recordai-vos d'isto, e tornai elles, e não nós, responsaveis pelos seus actos.

Scrooge fez-lhe promessa affirmativa a tal respeito; e então dirigiram-se invisiveis como antes tinham estado, aos suburbios da cidade. Tinha o Espectro a faculdade notavel (que Scrooge já notara em cada do padeiro) de se poder accomodar a qualquer lugar com facilidade, não obstante a sua forma gigantesca, de sorte que debaixo da menos elevada abobeda, conservava tanta graça e tanta magestade como sob o portico mais elegante.

Talvez fosse o prazer que sentia o bom Espirito em patentear bem esta singular faculdade, ou então a tendencia do seu caracter benevolo e generoso que o levou direito á casa do caixeiro de Scrooge; effectivamente lá se dirigiu levando Scrooge agarrado á sua tunica.

No limiar da porta o Espirito sorriu-se e parou para abençoar o domicilio de Bob Cratchit com os pingos da sua tocha. Ora vejam! Bob não tinha mais de quinze Bobs [2] por semana! Cada sabbado não mettia no bolço mais do que quinze copias do seu nomes de baptismo, e todavia o Espirito do Natal presente abençoou o seu alojamento de quatro sallinhas!

Levantou-se então Mistress Cratchit, esposa de Cratchit, trajando pobremente um vestido já duas vezes voltado, mas abundante em fitas que são baratas, e fazem grande effeito por seis pence; e veio pôr a mesa, ajudada por Belinda Cratchit, a sua segunda filha tambem abundante em fitas, entretanto que Pedrito Cratchit mettia um garfo na panella das batatas, e mordendo os bicos dos seus colleirinhos monstruosos (propriedade particular do papá, mas que n'aquelle dia trespassara a seu filho e herdeiro.) pavoneava-se por se ver vestido tão elegantemente, morrendo por ir mostrar aos parques o seu enxoval.

E em seguida dois Crathchits mais pequenos precipitaram-se no quarto, bradando que acabavam de cheirar o pato diante da porta do padeiro e tinham-n'o reconhecido como o d'elles; e ebrios de prazer com a lembrança d'um molho de salva e cebola principiaram a dansar de contentes em volta da meza, elevando ás nuvens Pedrinho, em quanto este (sem orgulho, apezar dos seus colleirinhos serem tamanhos que quasi o suffocavam), abanava ao lume, até que as batatas custosas de cozer, logo que ficaram promptas vieram bater na tampa da panella, para denunciarem que deviam ser desbulhadas quanto antes.

— Que será que tem demorado o vosso excellente pai, disse mistress Cratchit, e vosso irmão Tiny Tim; e Martha? No Natal passado chegou meia hora antes.

— Eis aqui Martha, mãe! disse uma rapariga, apparecendo ao mesmo tempo.

— Ahi vem Martha, bradaram as creanças. Hurrah! Ó Martha, sempre temos um pato!

— Ah! minha filha, Deus te abençoe; como vens tarde, disse mistress Cratchit; e desembaraçando-a do chaile e da touca com zelo officioso.

— Tinhamos muita obra para acabar que ficou da noite passada, replicou a menina, e deviamos entregal-a hoje de manhã.

— Bem, bem. Não pensemos mais n'isso; como vieste, foi o que nós quizemos, disse mistress Cratchit. Senta-te diante do fogão, e aquece-te.

— Não, não! ahi vem o papá, disseram as duas creanças que appareciam em toda a parte ao mesmo tempo. Esconde-te Martha, esconde-te.

(Continua.)

  1. Biffins — especie de bolinhos.
  2. Bob é o diminutico de Roberto, e em giria popular significa tambem um schilling.