Em Febre

O cerebro escalda-me e meu corpo parece se fundir numa das infernaes caldeiras de Satan.

Eu todo sou delirio...

No leito duro, pobre e estreito, refocillo-me, estortego e procuro uma posição commoda para minhas calcinadas carnes doloridas... O rosto entumescido faisca de dôr; os olhos avermelhados, ditatados, fuzilam, chispeiam na orbita encandecida.

Sinto os membros a estalar, e no auge d'afflicção desesperada um zimbro terrivelmente frio de suor me alaga.

Então calafrios medonhos me fazem engorgitar, nos estremecimentos nervosos e loucos...

Um ai convulsivo expira, hystericamente agudo, em meu labios ressequidos!... Abandono-me exhausto, impotente, aos abraços ferreos da enfermidade, que me sopra — pelo ambito do pulmão ensanguentado — o bafo fatal da tuberculose...

A pelle similhante a pergaminho, mirrada e transparente, só humedece quando um esforço inaudito, feito para expellir o catarrho amarello, cosido e ondeado de sangue, me prostra abatido e gemebundo...

Minhas ideias se quebram em horriveis fracassos de debilidade mental, e vão a se baralhar numa lucta delirante, travada nos afogueiados compartimentos de meu cerebro estranguládo de allucinação!...

Soluço, blasphemo, supplico e ainda ella, a febre maldicta, lastra medonhamente elevada...

Vejo á cabeseira o enfermairo solicito, e acolá ao canto da minha escrevaninha borrada de tinta, pequena e atulhada de livros, o medico pensativo que me espreita com olhares auscultadores, emquanto os ledos hipocraticos reviram a penna, que me acaba de fulminar prognostico de mil symptomas assustadores.

Já as glandulas me incham e começam a tomar conta da tracheia esturricada... Não posso agora soltar mais que um confuso e algaraviado composto de palavras roucas, que atravessam, assobiando e com guinchos, a larynge inflammada.

Um enleio feroz de dôres me suffoca!...

Num arranco extremo e agonioso principio a succumbir.

Gemo, arrebento de ancias, inteiriço os membros fracos e deslocados, inspiro, entre haustos prolongados e lagrimas ferventes, o ar rarefeito e impuro disperso pelo ambiente de meu quarto.

Ouço um cicio duvidoso a perpassar pela conversa discreta e fugitiva dos que me assistem...

Que sentença abominanda correrá atravez d'esse tribunal balbuciante, convocado para me lançar o tetrico e solemne ukase-cxtremis mortis?...

Coragem, que chega meu instante ultimo.

Não mais a alvura do lençol vejo: o sangue se irrompe de meu corpo inteiro, na quentura escaldante do cobre derretido na fornalha das fundições...

O bacillus terrivel, letifero, mortal, estragou, na furia mesquinha de destruição, a minha vida tão curta, tão doce que se esmorece aos cortes suppliciantes da tesoura fatal !...

Meus lamentos já surdos, imperceptiveis esvaecem como invocações perdidas pelo recinto dos templos.

No estertor de moribundo, que sou, me levanto hirto, sombrio e coruscante como o anjo Disrael, guardando as portas do Eden terreal!...

Então curvando o alfange da esperança aos pés de Deus, brado: dae-me a vida, Senhor, quero a saude recuperada! Uma gargalhada silenica, alvar,convulsiva me estoira aos ouvidos, e o Quinino—o deus de cuja infallibilidade extrema não mais duvido—cahe, guelas abaixo, deixando na passagem cheia de milagres e glorias o vestígio d'um gosto terrivelmente amargoso, cuja virtude de effeito produz a salvação!! Salve, carrasco da molestia ! Tu mereces solemne coroação universal, a que devem concorrer todos os miseros martyres que perdem a existencia, aos beijos pestilentos e incendiantes da febre!...

Junho—1893.


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.