Tanira

Pavorosa a historia de sua vida.

Tanira, a ciganinha, como era conhecida, nascera lá nessas planicies da Bohemia, além, no velho continente.

Nascera lá onde o sol inunda de mais fogo um paiz abrazado de crenças fanaticas e seculares: lá, onde o sangue do gitano parece que anima as proprias veias graniticas d'essa immensa e ante-diluviana cadeia dos Carpathos.

De lá de suas tendas avoengas e errantes, expulsou-a um dia o tufão exterminador que varre os filhos da poetica raça dos beduinos europêus, de um solo frio e nevado para as terras calmosas do Equador sul americano.

Cá chegou Tanira, acompanhada de um velho pa decrepito e de dous pequenos irmaôs.

Mas... desventurada ! mal pisava a terra—agora sua nova patria — e tinha de amparar, no seio infeliz e arquejante, a cabeça deslocada do ancião que lhe fora o pae e guia.

Depois eram os dous tenros irmãozinhos, fugindo com uma troupe de funambulos ambulantes, e ella-misera menina-só e completamente só...

O orgulho admiravel desua raça lhe transvasava do bello rosto amorenado e pensativo: e Tanira resistia ao brilho fementido e satanico do pão comprado pela deshonra!

D'ahi começou o seu intermino e cruel penar. resumido no abandono e na desolação.

E soffria, muitissimo soffria...

Quantos não a viam vagar sempre e sempre, pousando aqui e acolá, qual a pequena ave que trina, em soluços, um poema de dôr, pela morte dos filhotinhos envolvidos, no ninho desabrigado, pela neve assassina? !...

No seu caminhar de creança-desolada peregrina sem rumo-se desafogava, modulando os cantos syllabicos de uma elegia apaixonada, que recordava pelos accentos voluptuosos do seu adorado idioma, as blandicias repassadas de melancholia d'algum majo embriagado de amor, que, ás harmonias lacrimosas do alaúde, dirigisse supplicas á bohemia seductora, enlanguescida...

O tempo fazia o seu effeito em Tanira: durante as longas e penosas caminhadas, ia ella tomando aquelle porte magico, inexprimivel e captivante das encantadoras descendentes de Agar-a formosa escrava predilecta.

Longe, bem longe do céspede natalino, aprimorava-se em fórmas, emquanto as fibras d'alma se lhe arrebentavam a golpes agoniosos de saudades.

Por cima das afilicções que lhe pungiam o corpo, vinha o cruciamento moral da profunda nostalgia!

Vestes andrajosas e esgarçadas mal lhe tapavam aquelle corpo de uma estatuaria divina!.

De sandalias lhe servia aquelle proprio terreno sobre que perambulava, e onde, para dilacerarem as suas delicadas carnes palpitantes, havia moitas espinhosas de ericaceas, em vez do esquinantho acamurçado.

Do veranico os escaldos, da invernia as intemperies supportava Tanira.

Abatida por aquelle ingrato jornadear, ainda assim a martyrisada ciganinha possuia labios ppara o canto, esperança para a prece...

Isolada, encontravam-na os espreguiçamentos da alvorada! Isolada, vinham os beijos auri-inflammados de Vesper accordal-a da dôr!

Tanira fazia como fervor convicto de gitana um rogo a Allah-o deus de sua fé: arrancar-lhe a consciencia do soffrimento...



A formosa bohemia expatriada foi attendida.

Ninguem mais lhe pronunciava o nome, sem additar: «Pobre ciganinha»!

Enlouguecera, deixára de comprehender o seu martyrio!

Mas continuava a vagar pelos caminhos invios das cercanias, proseguindo na vida errante de agarena...

1893—março.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.