“SOLITÁRIO, cortando o etéreo espaço,
Prossegue toda a noite o anjo valente
Até que a Aurora próvida destranca,
Pelas girantes horas despertada,
Coas róseas mãos os pórticos do dia.
No monte do Senhor, chegada ao sólio
Gruta se abre onde em turnos sempiternos
Sai e entra, uma após outra, a luz e a sombra,
Nos Céus mostrando a alternativa bela
Que a noite e o dia no teu Mundo formam.
Assim que por um lado a luz se ausenta,
Do outro vem vindo complacente a sombra,
Semelhante ao crepúsculo terrestre,
Pelo assinado prazo os Céus toldando.
Ao zênite elevada então a Aurora
De ouro empíreo se arreia, e a noite impele
Diante de si co’os orientais fulgores.
Eis o anjo encara em todo o campo do éter
Linhas brilhantes de esquadrões maciços,
Carros, feros corcéis, flagrantes armas;
Sobre flamas ali refletem flamas;
Já pronta a guerra está, tudo arde em guerra:
Vê que às claras ali se conhecia
Quanto por novas relatar tentava.
Logo entra ovante nos celestes coros
Que, em viva aclamação e gosto intenso,
Recebem-no, ele o só que volta puro
Dentre tantos milhões de reprovados.
Levam-no, alto aplaudindo, ao sacro monte
E em frente o postam do superno sólio.
Eis dentre rolos de douradas nuvens
Este nectáreo acento fez ouvir-se:
— “Servo de Deus, cobriste-te de glória
“Tu que, às sós, contra inúmeros rebeldes,
“A causa da verdade sustentaste:
“Das palmas a melhor na destra empunhas.
“Tens em tua constância mais grandeza
“Do que eles mostram no poder das armas:
“Da alta verdade o testemunho dando
“Chamaste a ti o universal opróbrio,
“Mais duro de sofrer que a dor mais dura:
“Viste que mundos mau te reputavam
“E só de Deus a aprovação quiseste.
“Só resta a teu valor fácil conquista:
“Regressa, ataca as inimigas hostes,
“Que em glória mais subida hoje lhes fulges
“Do que o desprezo foi que te votaram:
“Vence por força os que a razão recusam,
“Os que a reta razão por lei não querem
“Nem por monarca o intrépido Messias,
“Que em mérito e no jus sustém seu trono.
“Parte, ó caudilho das celestes tropas,
“Parte, Miguel, e tu, Gabriel invicto,
“Que nas lides guerreiras lhe és segundo;
“Meus invencíveis filhos ponde em campo,
“Ponde em campo esse exército do Empíreo;
“Milhares e milhões mostrem-se armados,
“Igualem a aluvião de ímpios rebeldes.
“Com brio os assaltai, com ferro e fogo.
“E dos Céus perseguindo-os té às orlas,
“Longe de Deus e celestial ventura,
“No antro os lançai da punição eterna,
“Caos Tartáreo que, a sorvê-los prontas,
“Abre do golfo ardente as vastas fauces.”
A soberana voz assim se expressa.
Eis de toda a montanha o âmbito envolvem
Escuras nuvens que medonhas vertem
Rolos de fumo e turbilhões de flamas,
Sinal de despertar-se a ira do Eterno;
E do cume dos Céus a etérea tuba
O estrondoso clangor seva dispara.
Logo das tropas celestiais os chefes
No campo empíreo impávidos as formam
Em imensa coluna impenetrável:
Marcha em silêncio o exército brilhante
De instrumental guerreiro ao som que incita
Ao p’rigo ilustre os corações heróicos,
Obedecendo a generais divinos
De Deus, do Filho seu na augusta causa.
Na marcha os liga indissolúvel nexo:
Nem montanha, nem vale, ou rio ou bosque,
Lhes urde estorvo, lhes desune as filas;
Afastadas do chão levam-se as plantas,
Sustém-lhes o ar submisso os ígneos passos.
Qual voando ao Éden em regradas turmas
Citada veio a geração das aves
Para de ti seus nomes receberem, —
Tais do lúcido pólo eles avançam
Por extensas regiões, por longas plagas,
Deste teu Mundo décupla grandeza.
No horizonte boreal eis que se avista,
De banda a banda, um campo ignivertente,
Indício fiel de bélico aparato, —
E de mais perto visto nos descobre
De Satã os exércitos unidos:
Eriçam-se sem conta as duras lanças,
Cerram-se os elmos, e os escudos mostram
Jactanciosos emblemas insculpidos:
Lá se apressam com fúria, imaginando
Que nesse dia, por astúcia ou força,
A montanha de Deus conquistariam,
E que da Onipotência imensurável
O invejoso rival, o êmulo altivo,
Se assentaria no supremo trono;
Mas em meio caminho os seus projetos
Descobriram-se logo írritos, loucos.
Ao primo intuito nos parece estranho
Que anjos, opondo-se em feroz batalha,
Uns contra os outros férvidos se arrojem, —
Eles que tão unânimes soíam,
Como filhos de excelso potentado,
Em festins de prazer e amor unir-se,
Ao Sempiterno Pai hinos cantando:
Mas idéias de paz, brandos projetos.
Evaporam-se, assim que brama e troa
O alarma temeroso, a voz de assalto.
O apóstata, do exército no centro,
Monta um coche que o Sol no brilho iguala:
Entre ígneos querubins e escudos de ouro
Tal porte ostenta que simula o Eterno.
Assim que estreito e pavoroso espaço
Entre ambos os exércitos avista,
Que fronte a fronte mútuos se alardeiam
Terríveis massas de extensão medonha,
Desce Satã do sublimado sólio;
E, com passo avançando altivo e vasto,
Todo fulgindo de brilhantes e ouro,
Nos mais altos projetos engolfado,
Vai logo pôr-se à frente das colunas
Onde mais p’rigos proporciona a guerra.
Abdiel, que das ações as mais ilustres
Sempre se adorna e que de heróis se cerca,
Encara-o, — e, cheio de insofrida fúria,
Idéias tais no coração rumina:
— “Ó Céus! Como do Altíssimo o transunto
“Existe onde a pureza e a fé já faltam?
“Como, depois da perda das virtudes,
“Inda resta valor, potente heroísmo?
“E como é crível que o mais fraco possa
“Parecer de invencível valentia?
“Eu, confiado de Deus no auxílio ingente,
“Vou essas forças debelar, eu que ontem
“Suas razões provei fúteis e falsas.
“Justo é que vença, quando a espada empunha,
“Quem venceu defendendo a sua verdade, —
“Num e noutro conflito obtenha os louros,
“Não obstante da inveja o estorvo infame,
“Quando a razão recorre urgente às armas
“Contra as armas que alçou fera injustiça,
“Deve sempre a razão cantar vitória.”
Assim, pensando, avança da coluna
Contra o inimigo audaz que em campo o espera
Por essa prevenção embravecido.
Desta maneira impávido o provoca:
— “Soberbo, então achei-te? O fito punhas
“Em chegar, sem que alguém te urdisse estorvos
“Às alturas que fero ambicionavas,
“Do imensurável Deus ao lado, ao trono
“Que abandonados e indefensos crias
“Só pelo medo, difundido ao longe,
“De tuas forças, da eloqüência tua;
“Louco! sem distinguir fútil a empresa
“De contra o Onipotente pôr-se em armas!
“Ele que pode, co’o mais leve aceno,
“Criar, armar exércitos infindos,
“Que tua audaz insânia aniquilassem, —
“Ou de um só golpe e só coa destra sua,
“Que além se estende dos limites todos,
“Exterminar-te a ti, tuas falanges,
“E no Orco tenebroso submergir-vos!
“Mas vês que o teu pendão nem todos seguem:
“Milhões de anjos ali, que o Eterno adoram,
“Preferem da piedade o fiel partido:
“Porém vê-los teus olhos não puderam
“Quando eu a sós, de todos discordando,
“Combati sabedor teus vãos sofismas.
“Eis minha crença: Vê, posto que tarde,
“Que às vezes poucos acertar conseguem
“Enquanto muitos mil no erro se engolfam.”
Assim o arqu’inimigo lhe responde,
Com ar de mofa, e de través olhando:
— “Por teu mau fado, investes tu primeiro,
“Quando me abraso na ânsia de vingar-me!
“Já voltas da fugida, anjo rebelde?
“Vem, toma os prêmios que o dever te outorga
“Como primícias deste braço justo
“Por tua insana língua provocado,
“Ousando sediciosa, em cúria plena,
“Opor-se ao terço dos sublimes Numes
“Que ilesa em si a divindade querem.
“Enquanto os animar divino alento,
“Ninguém de Onipotente há de jactar-se.
“Sei que dos sócios teus certo te adiantas
“Para te ornares do meu amplo espólio,
“E demonstrares às coortes minhas
“Os seus desastres na vitória tua.
“Pois bem: mas quero que entretanto me ouças,
“E nem te gabes que ao silêncio me urges.
“Sempre julguei que Céu e liberdade
“Eram comuns a todo o empíreo Nume:
“Vejo agora porém que hórrida inércia
“A todos esses constitui escravos
“Que tão armados me apresentas hoje,
“Da música e festins ao gozo entregues,
“Do Céu serventes vis, histriões, comparsas.
“Por que demência tão risível cuidas
“Que a liberdade ao servilismo ceda?
“Ambos se hão de mostrar no dia de hoje.”
Logo Abdiel desabrido assim lhe torna:
— “Apóstata, prossegues sempre no erro;
“Afastado da viela da verdade
“Nem mesmo do erro te eximir procuras:
“Manchas da escravidão co’o injusto nome
“A obediência que todos tributamos
“A Deus, à Natureza, sempre acordes.
“Quem pode mais e se avantaja em tudo,
“Inevitáveis leis aos outros dita:
“De Deus, da Natureza, eis o diploma;
“Eis à nossa obediência o jus supremo.
“É sim escravo o que obedece ao louco
“Que contra o que mais pode se rebela:
“Tais são os teus agora a ti submissos,
“A ti não livre, de ti mesmo escravo,
“E que não coras por atroz malícia,
“De nossos ministérios exprobrar-nos.
“Lá tens teus reinos no Orco, impera neles:
“No Céu eu sou feliz servindo o Eterno,
“Obedecendo a seus divinos mandos
“Que têm supremo jus a ser cumpridos:
“No Orco, de cetro em vez, grilhões te aguardam.
“No entanto, pois que da fugida volto
“Por meu mau fado, como agora dizes,
“Recebe na ímpia fronte este tributo.”
Disse. E do alto vibrou um talho heróico
Que, pronto como o raio, cai em peso
No elmo orgulhoso do feroz imigo
Sem que ele possa co’o tremendo escudo,
Coa vista perspicaz, co’o ardente gênio,
Prever, desviar a furibunda ruína.
Passos recua dez Satã enormes;
Sobre um curvado joelho então caindo,
Pôde a metade interceptar da queda
Na lança robustíssima apoiado
(Assim do seio do terráqueo globo
Rompendo um pé de vento ou peso de águas,
Tudo arrombando que por diante encontram,
Batem num monte e lhe deslocam parte
Que com todo o arvoredo se submerge).
De espanto se enchem os rebeldes tronos;
Mas dobram de ira ao ver com tanto insulto
O seu mais alto chefe enxovalhado.
Nisto o exército nosso rompe em vivas,
Exulta, quer vencer, pede a batalha.
Eis manda troar Miguel a empírea tuba
Que na amplidão dos Céus ribomba e brama,
E ao Altíssimo logo o Hosana augusto
Entoam fiéis as celestiais falanges.
Não pasma o imigo, e requintando a fúria
Com choque horrendo sobre nós se atira:
Tal bramido então ruge e tal estrondo,
Como jamais se ouviu dos Céus no espaço:
Com feroz confusão tinem, retinem
Umas contra outras férvidas as armas,
E hórridas rangem das carroças brônzeas
As arrojadas rodas furibundas;
Rechinam as descargas flamejantes
De ígneos dardos que inúmeros cobriam
Todo o Céu co’uma abóbada de fogo.
Espantoso terror se difundia
Do estampido e prospecto da batalha.
Com ímpeto e furor inextinguíveis
Os exércitos dois mútuo se assaltam.
Todo o âmbito dos Céus troa e retumba, —
E, se o Mundo formado então já fora,
Em seus eixos tremera inteiro o Mundo:
E por que não? se os combatentes eram,
De uns e de outros, milhões de anjos terríveis,
Dos quais o menos forte, o braço alçando,
Nos astros todos agarrar pudera
E, em vez de dardos, no amplo Céu brandi-los!
Tinham poder tão válidas coortes,
No truculento arrojo das batalhas,
De envolver tudo em combustão horrível
E perturbar da pátria a ordem ditosa,
Se do seu trono o celestial Monarca
Lhes não marcasse às indizíveis forças
Com mão potente imprescritíveis metas.
Dividem-se em legiões; porém cada uma
Formidoloso exército parece,
E cada braço armado se afigura
Uma inteira legião em valentia.
Campeando no mais forte das batalhas
Cada simples guerreiro é cabo, é chefe;
Certo no ensejo das manobras todas,
Sabe avançar, parar, mudar de frente,
Abrir, cerrar a impávida coluna:
A nenhum lembra fuga ou retirada,
Nem deslustrosa ação que indique medo;
Confia em si cada um, crendo que existe
No próprio braço o arbítrio da vitória.
Várias ações de perdurável fama
Nesse dia brilharam infinitas;
No espaço se estendeu confusa a guerra.
Ferve ferida a pugna, ora a pé firme, —
Ora, as asas imensas agitando,
Atormentam todo o ar; todo o ar parece
De hórridas labaredas abrasado.
Longo tempo a balança do destino
Teve ouro-fio a sorte da batalha.
Então Satã, que prodigiosas forças
Naquele dia em si tinha provado
Sem anjo achar que lhe impedisse o impulso,
Viu, quando sob o fogo punha em ordem
Os serafins que a guerra dispersara,
A espada de Miguel que alto brandida
Descarrega feroz, rompendo os ares,
O acicalado gume, e a cada golpe
Abola e talha batalhões inteiros;
Correu a opor-se a destruição tamanha,
Do amplo escudo coa enorme redondeza,
Penhasco orbicular que hórrido cobrem
Dez pranchas de diamante impenetrável.
O grande arcanjo, assim que perto o avista,
Deixa as que entre mãos tem ações de glória,
E, alegre coa esperança de ali mesmo
Dos Céus findar as guerras intestinas
Ou derrotando o imigo ou pondo-o em ferros,
Com hostil catadura e aceso rosto
Dirige-lhe primeiro estas palavras:
— “Autor do crime inomidado e ignoto
“Nos Céus té que um rebelde em ti notaram,
“Mas (como observas) espalhado agora
“Brotando odiosa guerra, odiosa a todos,
“Posto que há de fazer, por plano justo,
“Em ti, nos teus, o mais horrendo estrago, —
“Como turbaste aos Céus a paz ditosa
“E o mal na Natureza introduziste
“Que antes dos crimes teus ela ignorava?
“Como em quantia de anjos tão subida,
“Sempre justos e fiéis, hoje falsários,
“Tua malícia destilar pudeste?
“Mas co’o resto sagrado em vão tu instas;
“Fora de seus confins o Céu te expulsa.
“Dos puros Céus coas eternais delícias
“Incompatíveis são violência e guerra.
“Vai-te co’os sócios teus, quais tu, malditos;
“O crime de que és pai contigo leva
“Do crime para a estância, o Inferno hediondo:
“Lá teus distúrbios desenfreia. Vai-te
“Antes que minha espada vingadora
“Do teu julgado a execução comece,
“Ou antes que de Deus o ódio fulmíneo
“Te precipite em tresdobradas penas.”
— “Não julgues tu” (responde-lhe o contrário)
“Que essas ameaças vãs pelo ar desfeitas
“Possam mais que teu braço reprimir-me.
“Algum dos sócios meus puseste em fuga?
“Se alguns prostaste... não se ergueram logo?
“Como esperavas transigir comigo,
“Soberbo! e com ameaças expulsar-me?
“Erras pensando que esse fora o termo
“De tanta guerra que de crime alcunhas
“Mas que chamar nos praz guerra de glória.
“O Céu por força conquistar queremos,
“Ou do Inferno esse horror por ti sonhado
“No Céu introduzir, e ali ao menos
“Ser livres se reinar nos for defeso.
“No entanto assume quanto tens de forças,
“Invoca o Deus que Onipotente dizes;
“Não fujo, hei de alcançar-te ou longe ou perto.”
Assim falaram. Pronto se aparelham
Combate inexprimível. Quem pudera,
Inda com língua de anjo, relatá-lo?
Ou quem a tal prodígio iguais no Mundo
Encontrara expressões que conseguissem
Alevantar o entendimento humano
A tal altura do poder divino?
Em ações, em grandeza, em porte, em armas,
Pugnando ou quedos, pareciam Numes
Aptos a disputar dos Céus a posse.
Brandindo a espada de ígnea folha ondeante,
Traçam nos ares círculos imensos,
E (quais dois grandes sóis) em frente um do outro
Seus escudos flamejam: tudo pasma!
De ambos os lados rápida recua
A multidão dos anjos; — e, onde há pouco
Da batalha o furor mais se acendia,
Abre-lhes largo pavoroso campo
Revolto com borrasca tão medonha.
(Desse teor, — se contudo as coisas grandes
Podem de outras pequenas deduzir-se, —
Dois planetas, no caso que árdua guerra
Entre as constelações se declarasse
Rota a harmonia que une a Natureza,
Se investiriam nos etéreos campos,
As órbitas disformes confundindo
Do destrutivo duelo ao rudo abalo!)
Logo cada um, erguendo o braço altivo
Que só cede ao do Eterno, ajeita um golpe
Que decisivo de uma vez conclua
A renhida pendência. Iguais em ambos
Balançam-se ouro-fio astúcia e força.
Mas de Miguel a espada, — havendo obtido
Têmpera tal nos arsenais celestes
Que outra, por mais que fosse ou forte ou buída,
Ceder-lhe havia, — de Satã encontra
A espada atroz descarregada de alto:
Em duas lha partiu; e, ao mesmo instante,
Brandida em roda se entranhou profunda
Em toda a ilharga do assanhado monstro.
Então Satã, que pela vez primeira
Soube o que é dor, torceu-se, recurvou-se, —
Com tamanha ferida e tão violento
Ousou vará-lo o fulminante alfanje!
Porém compostos de substância etérea
Cerram-se prontos os órgãos divididos,
Vertido havendo um rio caudaloso
De sangue espiritual, nectáreo fluido,
Que as armas lhe manchou dantes fulgentes.
Logo lhe acodem mil valentes anjos
Que o abrigam do contrário, enquanto ao coche
Outros em seus escudos o transportam
Deixando-o longe ali do horror da guerra.
Então aflito o monstro os dentes range,
Furibundo, timbroso, envergonhado
Por ver-se ombreado de outrem, reprimido
Com tal desonra seu feroz orgulho,
E desfeita a misérrima vaidade
Porque se cria igual do Onipotente.
Mas de novo, eis Satã! foi breve a cura
(Diversos do homem, cuja frágil vida,
Repartida por órgãos tão conexos,
Se extingue em todos mal que num se extingue,
Os espíritos gozam permanente
Em cada órgão a vida; são baldadas
Quaisquer feridas, por mortais que sejam,
Feitas na sua líquida substância
Como o ar sutil e puro; é só possível
Por aniquilação dar-lhes a morte:
Neles tudo ouve, vê, sente, medita;
Cada um, como lhe praz, retém ou muda
Voz, densidade, cor, forma, grandeza).
No entanto ações, — como estas, memoráveis, —
Noutros sítios o campo condecoram:
Gabriel, à frente de coluna invicta,
Ali peleja e com fervor derrota
Umas sobre outras as profundas linhas
Do cruento rei Moloch. Este insensato
O arcanjo desafiou, — e prometera
Levá-lo de rojão preso a seu carro;
Té insultou do Onipotente o Filho!
Mas logo um talho do celeste alfanje
Lhe abriu té a cintura o corpo e as armas;
Louco o monstro com a dor fugiu urrando.
Uriel, Rafael, do exército nas alas,
De Adramaleque e de Asmodeu triunfam,
Tronos potentes de estatura enorme,
De adamantinas rochas guarnecidos,
Que, embriagados com os fumos da jactância,
De ser menos que Deus se desonravam.
Mas trespassados de hórridas feridas,
A malha rota, espedaçada a cota,
Fogem cheios de horror, já não altivos.
Nem se esqueceu Abdiel de erguer o alfanje
Contra o bando traidor que a Deus despreza;
Mas, repetindo estragos sobre estragos,
De Ariel, Arioche, Ramiel, o insano impulso
Rompe, suplanta, estrui, aterra, abrasa.
Pudera eu inda de milhares de anjos
Neste teu Mundo eternizar os nomes;
Mas essas puras, divinais essências
Contentam-se dos Céus coa fama ilustre,
E do aplauso dos homens se dispensam.
Nossos rivais, que perdurável fama,
Por guerreiras ações, força estupenda,
Com brio ingente como nós ganharam,
Deixo-os sem nome ao negro olvido entregues,
Que dos Céus nos registos por sentença
Esses rebeldes cancelados foram
(Não merece louvor a valentia
Se a justiça e a verdade a não regulam;
Só lhe cumpre esperar desprezo, infâmia:
Ambiciona renome, aspira à glória,
Nefandos desacatos perpetrando?
Sofra a sentença, suma-se no Letes).
Dos contrários a flor então vencida,
Toda a ordem de batalha se interrompe:
Soltos em correria escaramuçam.
Surge desordem torva, hórrido estrago:
De armas quebradas todo o chão se junca,
E derribados em montões jaziam
Coches, aurigas, ignitos cavalos.
Seus postos té então guardaram firmes;
Mas, já lassos recuando, vão de encontro
Às linhas de Satã que, desfalcadas,
Cheias de susto e só na defensiva,
Romper se deixam das fugintes turmas.
De medo, fuga e dor, isentos dantes,
Eis que de medo e dor estão pungidos:
Em vergonhosa fuga arrancam todos,
Sofrendo tanto mal os infelizes
Da rebeldia pelo crime infando.
Do exército de Deus outro era o aspecto:
Em cúbica falange avança firme,
Impassível, inteiro, impenetrável;
Seu coração imaculado e puro,
Sua obediência aos Céus, lhe conferiram
Sobre os contrários seus tanta vantagem.
Infatigáveis nas batalhas eram;
Não conseguia golpe algum feri-los, —
E, se árduo repelão os deslocava,
Tornavam de repente a entrar em linha.
Já surge a noite, e sobre o pólo estende
Seu manto escuro, complacente impondo
Da guerra ao cru motim silêncio e trégua:
Os vencedores e os vencidos folgam
Das nebulosas sombras circundados.
Miguel e seus heróis ali acampam,
E em roda postam querubins de elite
Que alerta voam quais ondeantes lumes.
Porém Satã, à frente dos rebeldes,
Rompendo a escuridão, longe se aloja;
Lá, contínuo velando, ajunta os chefes
Em conselho noturno e ousado diz-lhes:
— “Ó vós que o p’rigo demonstrou valentes
“E o valor invencíveis, caros sócios,
“Não só mui dignos sois da liberdade,
“Que assaz mediana pretensão reputo,
“Mas de honra, fama, poderio e glória,
“Da nossa alta ambição votos primários.
“Do Céu contra as mais válidas coortes,
“Empíreas guardas que mandou o Eterno
“A subjugar-nos à vontade sua
“Crendo-as capazes de tamanha empresa,
“Hoje batalha dúbia sustentastes:
“E sempre não sereis o que hoje fostes?
“De que ele se enganou é prova o fato:
“E, se onisciente foi té-’gora crido,
“Dora em diante falível se nos mostra.
“Certo é, com menos solidez armados,
“Alguma perda e dor temos sofrido,
“Nunca sentido mal em nós té hoje;
“Mas foi sentido e logo desprezado.
“Já conhecemos que a substância nossa
“É, pela origem que do Empíreo obteve,
“Não susceptível de mortal injúria;
“Que, sendo penetrada de algum golpe,
“Logo une e sara por vigor nativo.
“Fácil remédio cura um mal tão leve:
“Talvez nos outros próximos conflitos
“Mais fortes armas, golpes mais violentos
“Nos ganhem louros, o inimigo arrasem,
“Ou dele a par nos ponham, não havendo
“Grau algum superior na essência de ambos.
“Se as vantagens lhe vêm de causa oculta,
“A inteligência nossa, o nosso gênio,
“Inda perfeitos, atilados inda,
“Busquem-na: de a saber têm certa a glória.”
Disse, e assentou-se. Em rápida seguida
Se ergueu Nisroch, dos principados chefe;
Mui cansado, em pedaços a armadura,
Fugido o creras de hórrida batalha;
De carregado vulto assim responde:
— “Libertador, que válido nos firmas
“De nosso jus de Deuses livre o gozo
“E os nós nos quebras do recente jugo:
“Somos de certo inabaláveis Deuses;
“Mas, sujeitos à dor na lice entrando
“Contra impassíveis entes dela a salvo,
“Claro é que desditosos prosseguimos
“Com armas desiguais ímpar contenda,
“Que vai lançar-nos em ruinoso apuro.
“Que podem, mesmo em grau inacessível,
“Valor ou força quando a dor os tolhe,
“A dor que tudo abate e vence tudo,
“Que do mais forte herói decepa os braços?
“Talvez podemos da existência nossa
“O prazer separar sem grande custo,
“Vivendo em paz, da vida o bem mais doce;
“Mas a dor é a suma das desgraças,
“Dos males o maior, — e, em grau de excesso,
“Rouba a paciência, os ânimos deprime.
“Assim, quem ache os meios de arrasarmos
“O imigo nosso, invulnerável inda,
“Ou de possuirmos, dele à semelhança,
“Escudos e broquéis impenetráveis
“(Segundo julgo) não merece menos
“Do que o fautor da liberdade nossa.”
Eis Satã diz, tomando ar de importância:
— “Não está por achar-se o que em teu siso
“Crês essencial da nossa empresa à glória:
“Ei-lo; eu o trago. Qual de vós observa
“Com tão leviano olhar o brilho augusto
“Dessa fábrica etérea em que existimos,
“Dos Céus imensos o âmbito que ilustram
“Coas cores todas, com fragrantes cheiros,
“A planta, a flor, o fruto, as gemas, o ouro,
“Que logo se não lembre que se entranham
“Desta ampla mole no âmago profundo
“Seus brutos materiais, informes inda,
“De violência expansiva, de ígnea escuma,
“Té que, do Céu pelo calor tocados,
“Deixam de ser embriões, surgem tão lindos,
“Abrilhantados pela luz ambiente?
“Abrindo seus nativos, negros antros,
“Tiremos desses materiais informes
“Os que de fogos infernais se impregnem:
“Calcados dentro em grossos, longos tubos,
“Dilatar-se-ão da flama ao toque, e longe
“Atirarão com estrondoso ruído
“Sobre os imigos aluviões de estragos,
“A poeira reduzindo, aniquilando.
“Toda a sua altivez, seu valor todo, —
“De sorte que eles cuidarão confusos
“Que ao Eterno, tonante privativo,
“Nós arrancámos os trovões e os raios.
“Esta obra será breve e antes da aurora
“Seu fim terminará nossa esperança.
“No entanto revivei, desassombrai-vos:
“Pela prudência a força dirigida
“De nada desespera, alcança tudo.”
Falou, — e aos ditos seus a luz da vida
Nos sócios tinge os descorados rostos;
A lânguida esperança em forças medra.
Admira-se a invenção e como pôde
Ter escapado de qualquer ao senso:
Depois de achada foi por fácil tida,
Impossível se creu antes de achada.
(Talvez ainda nos futuros tempos.
Se a malícia puder campear ufana,
Alguém da raça tua dado a crimes,
Ou de influxos satânicos vexado,
Virá, em punição de enormes culpas,
A inventar semelhantes instrumentos
Para dessossegar os filhos do homem
Inclinados à guerra e mútuo estrago!)
Finda o conselho, voa tudo e as obras
Sem alguma objeção fervem, avultam:
Nelas braços inúmeros trabalham.
A vastidão do celestial terreno
Num instante revolvem, esquadrinham;
Nele da Natureza os mistos acham,
De crua rispidez embriões informes.
Com perícia sutil escolhem, mesclam,
De enxofre e nitro elásticas escumas
Que em candentes fogões cozem, calcinam;
Logo de escuros grãos feitas em montes
Recheiam arsenais. Veias ocultas
Uns escavaram de metais, de pedras,
Que deste orbe também no seio existem,
Deles depois fundindo os grossos tubos
E as balas, em que a ruína enraiva e voa;
Outros aprontam incendiário facho
Que inflama pernicioso ao toque os mistos.
Assim ultimam todos antes da alva
A servir prestes as ocultas obras:
Tudo segredo foi que só as viram
Os olhos fiéis da silenciosa noite. —
Eis formosa a manhã nos Céus aponta;
Do sono os anjos vencedores se erguem
E às armas toca a matutina tuba.
Todo vestido de armaduras de ouro
Pronto se forma o exército fulgente;
E exploradores à ligeira armados
Bater em roda vão do oriente os montes,
Nada deixam por ver, percorrem tudo,
Para espiar onde está o imigo ausente,
Se fugiu, se parou, se às pugnas volta.
Logo o avistam movendo-se já perto,
Coluna firme, a passo vagaroso,
Desenrolados os pendões soberbos.
Então com vôo arrebatado volve
Zofiel, dos querubins o mais ligeiro,
E assim do ar lhes bradou com voz de alarma:
— “Eis o inimigo! Às armas, ó guerreiros!
“Julgámo-lo fugido... e ei-lo que entanto
“Nos poupa o afã de longe irmos buscá-lo.
“Não mostra medo: vem qual grossa nuvem,
“E escrita no semblante lhe diviso
“Resolução segura e meditada.
“Apertai bem a cota adamantina,
“Segurai bem o capacete de ouro,
“E, movendo o broquel firmes e astutos,
“Cobri a fronte, resguardai o peito:
“Tem hoje de cair, se não me iludo,
“Não leve chuva de espalhadas flechas,
“Mas decerto com hórrido estampido
“Borrasca imensa de farpões de fogo.”
Com tal aviso e acautelados de antes,
Livres de estorvos formam-se ligeiros,
Sem confusão avançam em batalha.
Eis o inimigo: a passo vagaroso
Não longe vem marchando espesso e vasto,
E no centro da cúbica falange
Rodando vêm as máquinas terríveis
Com batalhões profundos encobertas,
Para mais disfarçar o ardil nefando.
Os exércitos ambos, mal se avistam,
Param. Logo, dos seus tomando a frente,
Satã os manda assim com voz que troa:
— “Divida-se a vanguarda sobre os flancos:
“Nossos contrários presenceiem todos
“Como composição e paz queremos,
“E com que aberto peito os aceitamos,
“Se lhes apraz a singeleza nossa,
“Se as costas nos não viram de perversos.
“Mas contra eles suspeito... Embora! Ouvi-me,
“Ó Céus! Por testemunha, ó Céus, vos tomo
“De quão bom grado, com que livre anelo
“Nós lhes perdoamos as ofensas nossas.
“E vós, que os postos designados tendes,
“As dadas instruções cumpri exatos;
“Pronto fazei ouvir quanto propomos,
“Saibam-no todos, trovejai terríveis.”
Apenas acabou o rei das sombras
Estes confusos, mofadores termos,
A testa da coluna logo se abre
E sobre ambos os flancos se desprega.
Eis descobrimos (vista estranha e nova!)
Três longas linhas de hórridos pilares
Montados sobre rodas corpulentas,
Robles e faias parecendo enormes
Nas montanhas ou selvas derribados,
Ocos ao longo, decotada a rama
Feitos eram de ferro e pedra e bronze;
Coas vastas fauces para nós abertas
Das tréguas a ficção prognosticavam:
De cada qual após, um anjo empunha
Sulfúreo facho de tremente flama.
Nosso exército então, no primo intuito,
Suspenso fica e mesmo se amedronta:
Logo os anjos na linha da vanguarda
Com repentino impulso e mão certeira
O facho estendem, vão tocar coa flama
Um tênue furo aos colossais cilindros.
Eis todo o amplo dos Céus se enche de lume
E súbito o escurece o fumo em rolos,
Que das profundas bocas abrasadas
Vomitaram as máquinas tremendas,
Rasgando os ares desmedido estrondo:
Expulsaram de envolta amplo granizo
De férreos globos, de encadeados raios,
Hórrida lava de hórridas crateras.
Em pontaria às vencedoras hostes
Tão fortes esses projéteis as feriam
Que em pé nenhuma lhes sustinha o impulso,
Posto a firmeza ter de um promontório:
Prostrados a milhões anjos e arcanjos
Rolavam de tropel uns sobre os outros.
Davam azo à derrota as armaduras;
Se não os empecesse o estorvo delas,
Fora-lhes fácil evadir-se aos danos
Por veloz contração ou vôo etéreo,
De espíritos sutis gozando os dotes;
Mas do destroço horrendo acompanhada
Forçava-os dispersão irresistível:
Mesmo espaçar as filas fora inútil.
Que mais fariam? Investir briosos?
Haviam ser de novo repelidos
Que outra fileira de adestrados anjos
Ia descarga separar segunda,
E à desonra do novo desbarato
Pulara o imigo de desprezo e mofa!
Fugir vencidos? Semelhante infâmia
Não sabem suportar almas tão nobres!
Satã, vendo-os em lance tão mesquinho,
Assim aos sócios seus zombando brada:
— “Amigos, esses bravos vencedores
“Por que param? Pouco há, tão feros vinham!
“E... quando cortesmente os convidamos
“A fronte e o centro da coluna abrindo,
“Todos se acanham, de projeto mudam,
“Vão-se e nos deixam! Nós que mais podemos?
“Que devaneio o seu! Olhai que dançam!
“Mas, inda que dançar neste momento
“Pareça um tanto extravagante e inculto,
“Talvez a paz proposta assim aplaudam.
“Suponho, pois, que, se outra vez ouvirem
“As nossas condições, hão de prestar-se
“À pronta ultimação do nobre ajuste.”
Belial lhe torna, por igual zombando:
— “Meu Chefe, as condições que lhes mandámos
“Têm peso assaz, têm sólido contexto;
“Com tal força os persuadem, como vemos,
“Que os alegram, a ponto de aturdi-los.
“Os que as ouviram com garboso porte
“Têm da cabeça aos pés sido intimados:
“Os que do assunto o principal ignoram,
“São inimigos que de rojo marcham.”
Crendo infalível a vitória sua,
Com tão faceto humor se divertiam:
Ser-lhes mui fácil igualar supunham
Com suas artes o poder do Eterno,
Motejar dos trovões, rir-se dos raios:
Às falanges de Céu deram apupos,
Enquanto as turba efêmera desordem.
Mas pronto a raiva os punge, incita, impele.
Armas próprias lhes acha com que invistam
Do inferno contra os danos ardilosos.
De repente (vê tu que enorme força
Dispensa Deus aos poderosos anjos!)
Dão às armas de mão, — e arrebatados,
Não menos que o relâmpago instantâneo,
Rompem, atiram-se às mais altas serras
(Que é dos Céus que este globo o encanto imita
Dos frescos vales, dos apricos montes);
Pelas arbóreas grenhas as agarram,
De seus fundos cimentos as sacodem:
Eis lá vão pelos ares oscilando,
Té-li imóveis, as mais altas serras
Penduradas das mãos desses guerreiros
Co’o peso inteiro de águas, brenhas, rochas.
Mal que as hostes rebeldes presenciaram
Que a prumo vão cair-lhes tão tremendas
Coas arrancadas bases as montanhas,
Enchem-se de terror, de susto pasmam:
Já imaginam ver de todo opressas
As linhas três das máquinas malditas,
E em abismos, das serras sob o peso,
Toda a sua confiança sepultada.
Quando nisto... — Sobre eles se desfecha
Uma aluvião de vastos promontórios
Toldando o pólo coas mais negras trevas,
Que as inteiras legiões lhes cobre e oprime.
Aumentavam seu dano as armaduras;
Amolgadas, torcidas, lhes esmagam
Metida nelas a substância fluida
Que, de implacáveis aflições vexada,
Urra gemidos que no espaço troam,
Enquanto emprega esforço desmedido
Para de tal prisão desentalar-se;
Que, se foram espíritos outrora
Da mais sutil e fulgurante essência,
Grosseiros torna-os hoje a horrenda culpa!
Assim que podem, ousam imitar-nos:
Arrancam prontos as vizinhas serras,
E, iguais em armas, contra nós se lançam.
Com hórrida impulsão de um lado e de outro
Arremessadas na amplidão dos ares,
Montanhas com montanhas abalroam:
Às escuras enraiva a atroz peleja
De alados montes sob espessas nuvens;
Comparadas com ela as pugnas de antes
Por jogos festivais podiam ter-se:
Com terror infernal retumba o estrondo,
É tudo confusão, é tudo estragos,
Decerto o Céu, cedendo a tanta ruína,
Ia em peso cair desmoronado
Se o Pai Onipotente, que previsto
Se assenta em seu santuário inabalável,
Das coisas todas consultando a suma
E conflito tão grande permitindo,
Lhe não tivesse as metas assinado:
Só queria cumprir seu alto intento
De encher de honras seu Filho sacrossanto,
Vingando-o de seus hórridos contrários
E declarando que depunha nele
De sua potestade a plenitude.
Ao caro Filho então assim se exprime
O Pai que junto a si no trono o assenta:
— “Meu Filho, minha glória, imagem minha,
“Filho querido, em cuja face augusta
“Ostentas a grandeza imensurável
“Que a divindade minha em si esconde;
“Em cuja mão, segundo Onipotente,
“Susténs todo o poder quanto eu possuo:
“Dois dias há, dos que no Céu contamos,
“Depois que foi Miguel com seus guerreiros
“A insolência domar dos revoltosos.
“Tem sido a pugna atroz, como era crível
“Se armados tais imigos se encontrassem;
“Iguais os criei, — só pôde a culpa entre ambos
“Pôr diferença apenas perceptível:
“Neutral deixei-os a si mesmo entregues,
“Sustei a execução do meu julgado.
“Mas sem fim, deste modo, e sem regresso
“Em perpétua batalha ficariam;
“Nenhuma solução possível fora:
“Da guerra todo o ardil se tem tentado
“E a mais subir não pode o horror da guerra;
“Té de dardos serviram as montanhas.
“O Empíreo a tais abalos estremece,
“E pode subverter-se o mais que existe,
“Lá vão dois dias; cabe-te o terceiro:
“Quanto vês, para ti dispus dest’arte;
“Tanto sofri para te dar a glória
“De pores fim a tão terrível guerra
“Que tu (e mais ninguém) findar só podes.
“Imensa cópia de virtude e graça
“Tão pródigo entranhei na essência tua, —
“Que teu poder dirão incomparável
“Todo o âmbito dos Céus, o Inferno todo.
“Só sirva esta perversa rebeldia
“De demonstrar que, — se és, por jus sagrado,
“Monarca e herdeiro do Universo todo, —
“Por mérito sem par também te aclamo
“De obter grandeza tal o ente mais digno.
“Eia pois, Filho meu! sobe ao meu carro,
“Co’o paternal poder tu invencível;
“As rodas lhe encaminha arrebatadas
“Com que a base dos Céus se abala e estruge.
“Meu arsenal tens franco; arma-te e leva
“Todo o meu trem, as minhas armas todas,
“Meu arco, os raios meus, a minha espada;
“Esses filhos das trevas talha e expulsa
“Dos celestes confins ao fundo do Orco:
“Deixa, como lhes praz, que ali aprendam
“Como Deus pune insultos perpetrados
“Contra ele e seu Messias, Rei do mundo.”
Eis todo o seu fulgor lançou em cheio
No Filho que o recebe em seu semblante,
E nele o Pai, qual é, se ostenta e brilha.
A filial Divindade assim responde:
— “Pai, que nos tronos celestiais imperas,
“Que és o primeiro dentre os entes todos,
“O mais santo, o melhor, o mais sublime:
“Glorificar teu filho buscas sempre,
“Sempre eu busco também glorificar-te.
“Minha altivez, meu gosto, a glória minha,
“Ponho em que tu declares satisfeito
“Que à risca as tuas ordens executo;
“Cumpri-las constitui a minha dita.
“Teu cetro, o teu poder, de ti recebo,
“E cheio de alegria hei de entregar-tos
“Quando no fim dos tempos estivermos
“Tu todo sempre em tudo, em ti eu todo,
“E em mim todos que a ti forem aceitos:
“Detesto quem detestas; levo adiante
“A tua alta clemência, os teus terrores;
“Em tudo eu sou de ti cabal transunto.
“De teu poder me armando, vou em breve
“Dos revoltosos expurgar o Empíreo
“E arrojá-los aos cárceres das trevas,
“Pavorosa mansão que lhes destinas
“Entre serpes cruéis que eterno mordem,
“Já que, gozar podendo a dita suma
“Cumprindo as leis que justamente ditas,
“Preferiram contra elas rebelar-se.
“Separados mui longe dos impuros
“Então os santos teus serão extremes,
“E, em redor de teu monte fulgurante,
“Te hão de cantar, trinando o som no espaço,
“Hinos de alto louvor com voz sincera,
“Sendo eu dessa harmonia o chefe augusto.”
Disse; encosta-se ao cetro, — e se levanta
Da direita do Pai onde se assenta.
Já pelo Céu rompendo despontava
O sacro brilho da manhã terceira: —
E o carro da paterna Divindade,
Qual furioso tufão, vinha correndo;
Por si movido em máquina de rodas,
Fuzila ao largo turbilhões de flamas
Animado de espírito celeste;
Sustêm maravilhosas, quadrifrontes,
Figuras quatro a querubins parelhas,
Em cujos corpos e asas se abrem, fulgem,
De estrelas à feição, milhares de olhos,
Que ornam também as rodas de berilo
Ferindo lume coa veloz carreira;
Sobre as cabeças se alça das figuras
De cristal puro cúpula elegante
Em que se apóia um trono de safira
Todo embutido coas peritas cores
Do arco celeste, do mimoso alambre.
De ponto em branco empireamente armado
Co’o mais lustroso do arsenal divino,
O Unigênito sobe ao carro ingente:
À destra sua assenta-se a Vitória
Asas de águia sublimes ostentando;
Pendem prontos ali seu arco e aljava
De trifarpados raios fornecida;
E em redor dele arrebatados voam
Rolos de fumo e de tremente flama,
Coriscos no ar espadanando torvos.
De anjos por dez milhões seguido avança
De longe seu fulgor resplandecendo;
E carros vinte mil, por mim contados,
Do trem do Eterno vindos, o ladeiam:
Sobre o cristal, no safirino trono
Que os querubins coas asas erguem, firmam,
Brilhante fende a vastidão do espaço.
Tanto que o fido exército o pressente,
De insólita alegria se enche absorto,
E vê, de anjos em mãos, a real bandeira,
Que precede nos Céus sempre o Messias,
Solta e fulgente tremular nos ares:
Miguel em torno dela pronto ajunta
As dispersas falanges, e num corpo
Todas dispõe sujeito ao Nume-Filho.
O divino poder, fúlgido arauto,
Franqueia-lhe a passagem majestosa:
Por ordem dele as arrancadas serras
A seus próprios lugares se retiram;
Mal que lhe ouvem a voz, submissas partem.
Toma o Céu outra vez seu lindo aspecto;
E, de viçosas flores adornados,
Montes e vales outra vez se riem.
O inimigo infeliz observa tudo,
E, mesmo assim, empedernido teima;
A rebelde batalha impele, arroja
Todas as forças que insensatas ruem,
Por desesperação vencer tentando.
Como pode em espíritos celestes
Obrar, caber perversidade tanta?!
Mas com que fatos se convence o orgulho?
Com que prodígio a pertinácia abranda?
Do grão Messias contemplando a glória,
De inveja se enchem, de aflição enraivam;
O que influir-lhes devia alta virtude,
Com mais sanha no crime os enfurece.
Subir-lhe até seu nível aspirando,
Loucos de novo metem-se em batalha:
Têm como opróbrio a retirada, a fuga;
Querem de um talho terminar a guerra,
Imaginando que por força ou fraude
Podem por fim vencer o Eterno e o Filho, —
Ou, quando mais não seja, sepultar-se
Na subversão inteira do Universo.
O Unigênito então, presente a todos,
Ao exército seu falou dest’arte:
— “Anjos, firmes ficai, firmes, ó santos,
“Em vossa refulgente formatura:
“Descansai neste dia de batalha.
“Penhoram vossas proezas ao Eterno;
“Por sua causa justa em vós provastes
“O invencível valor que dele tendes.
“Sabei que dessa multidão maldita
“De outrem às mãos a punição pertence:
“É de Deus exclusiva esta vingança
“Ou de quem dele a comissão receba.
“Não é prefixo que a batalha de hoje
“De multidão numérica precisa.
“Firmes ficai; por mim vede lançadas,
“Nesses ímpios ateus, do Eterno as iras:
“Não a vós, mas a mim, professam, juram
“Todo o desprezo e inveja, a raiva toda,
“Porque meu Pai, que do alto Céu possui
“A glória, o poderio, a majestade,
“De honras me cumulou, cumpriu seu gosto.
“Encarregou-me a mim de exterminá-los:
“Franquear-lhes quis (pois o desejam tanto!)
“Uma batalha em que decida a força:
“Ver-se-á quem pode mais, se eu só contra eles
“Ou se eles contra mim armados todos.
“Crêem ser a força tudo e não lhes peja
“Noutros dotes quaisquer ser excedidos:
“Dedigno-me portanto, em tal contenda,
“De outros servir-me; empregarei a força.”
Disse. Eis acende em fúrias o semblante
Que de medonho os olhos horroriza
E às coortes hostis terror dardeja.
As quatro querubínicas figuras,
As asas estreladas logo abrindo,
Em torno lançam pavorosa sombra;
E as rodas da carroça furibundas
Com ruído tão tremendo giram, voam,
Qual de exército enorme troa o ataque
Ou com feroz tormenta estruge o oceano.
Tão temeroso como a horrenda noite
O Messias investe os seus contrários;
Das ígneas rodas coa violência treme
Do imoto Empíreo a redondeza toda,
Toda... exceto de Deus o sólio augusto.
Sem demora os alcança, — e dez mil raios,
Que empunhava na destra, lhes atira:
Lá na íntima substância dor lhes cravam:
Então cheios de horror os ímpios perdem
Ânimo, forças, esperança, brio;
Até deixam das mãos cair as armas.
Derriba, esmaga co’o fulmíneo coche
Broquéis brilhantes, emplumados elmos,
Válidos serafins, ingentes tronos,
Na ânsia anelando que outra vez lançadas
Contra eles fossem arrancadas serras
E de furor tamanho os abrigassem.
Ao mesmo tempo, de uma banda e de outra,
Os inúmeros olhos deslumbrantes,
Que das quatro figuras quadrifrontes
Se abrem e fulgem pelos corpos e asas
E pelas rodas do animado coche,
Vibram, do mesmo espírito regidos,
Uma aluvião de devorante fogo
Que, por entre os malditos espalhado,
Forças, valor, de todo lhes consome,
E derribados pelo chão os deixa
De impotente aflição no horror imersos.
Contudo, só metade o Nume-Filho
De suas forças empregou prudente
E aos raios permitiu só meio impulso;
Exterminar dos Céus os inimigos
Levava em vista e não aniquilá-los.
Erguer fazendo os que prostrado tinha,
Todos diante de si, qual grei medrosa,
Furibundo os impele arrebanhados,
Persegue, abrasa, do fulgente Empíreo
Para os confins e cristalinos muros
Que, mui extenso espaço então abrindo,
E para dentro sobre si rodando,
Descobrem do atro Abismo o imenso vácuo.
Vendo tão pavorosa perspectiva,
Lá recua de horror o bando impuro;
Mas, dos raios que o seguem mais receoso,
Avança logo às temerosas margens
E da altura dos Céus se precipita,
Indo o eternal rancor sempre após ele
Do Báratro pelo âmbito insondável.
O Inferno, ouvindo tão feroz estrondo
E crendo que arruinado o inteiro Empíreo
Vinha sobre ele desabando a prumo,
Tremeu, — e fugiria amedrontado,
Se invencível o fado o não prendera
Em fundos alicerces, arreigados
Do tenebroso Abismo à base imóvel.
Nove dias durou a enorme queda:
O Caos mui espantado, ribombando,
Sente elevar-se décupla desordem
Entre sua congênita anarquia
E de hórridos destroços entulhar-se.
Por fim o Inferno, galardão dos ímpios,
Da dor e mágoa habitação hedionda,
Cheio de eterno, devorante lume,
Abriu as amplas, famulentas fauces,
Sorveu-os todos, e as fechou sobre eles.
Livre de tanto horror o Céu exulta;
Dos muros tapa logo o aberto espaço,
As deslocadas, lúcidas cortinas
Para seu sítio prístino rodando.
Único vencedor de seus contrários
Volta o Messias no triunfante coche;
E os santos, silenciosas testemunhas
De suas tão magnânimas proezas,
A recebê-lo partem jubilosos,
Insignes palmas da vitória erguendo,
E descantando, em refulgentes coros,
O triunfo imenso do Monarca ovante,
Herdeiro e Filho da eternal Deidade,
Empunhando igualmente o cetro augusto
Porque o mais digno de reinar se mostra.
Entre cânticos tais pomposo avança
Dos Céus pelas diáfanas campinas,
E chega breve ao majestoso alcáçar,
Onde, no erguido sólio do Universo,
Acha o potente Pai que à destra o assenta
Entre as delícias da inefável glória.”
“Assim, Adão, por comprazer contigo,
No alcance pus da inteligência humana
A descrição de celestiais sucessos,
Que, a não ser eu, ninguém soubera no Orbe:
Eles te guiem, na memória os guarda.
No Empíreo, entre os angélicos poderes,
Segundo ouviste, ardeu discórdia e guerra;
Rebeldes aspirando ao grau de Numes,
Foram punidos pela queda no Orco
Os ímpios todos com Satã, seu chefe,
Que, o teu feliz estado hoje invejando,
Trama os ardis que seduzir-te possam
A negar a obediência a Deus devida,
Da tua dita assim te despojando
E fazendo que em ti também recaia
O seu castigo e desventura eterna.
Se aos infortúnios seus puder ligar-te,
Exultará em bárbara vingança
Vendo que acinte tal magoa o Eterno.
A tão vis sugestões fecha os ouvidos,
De tua frágil sócia esteia o ânimo.
Da rebeldia a punição, que ouviste,
Como exemplo terrível a contempla:
Puderam ser no Céu sempre felizes,
Porém no Inferno despenhados foram.
Alerta! as leis de Deus nunca transgridas.”