URÂNIA, vem dos Céus, Musa divina:
De tua voz seguindo os sons sagrados
Muito inda além me remontei do Olimpo,
A regiões onde o Pégaso não sobe.
De uma das nove irmãs, que as priscas eras
Do Olimpo os topes habitar fabulam,
Só tens o nome: tu, nos Céus nascida
Antes de erguer-se o bipartido monte,
Antes de fluir a límpida Castália,
Descantavas harmônica, entretida
Coa sapiência eternal que irmã é tua,
Na presença do Pai Onipotente
Embebido em teu canto majestoso.
Filho eu da terra, ousei, por ti guiado,
Entrar no Céu dos Céus e éter divino
Haurir nas fontes que me deste francas.
Descendo agora aos pátrios elementos
Em meu ígneo frisão, infrene, alado,
(Qual noutro tempo o audaz Belerofonte,
Posto descesse de mais baixos climas),
Também me vale, ó Deusa! obsta-me a queda,
Que me faria em campos Aleanos
Desamparado, errante, envergonhado!
Metade falta de meu canto ainda;
Mas dentro da visual esfera diurna
Mais cerrados confins o circunscrevem.
Já não do pólo além, mas sobre o globo
Erguerei mais seguro a voz terrena,
Inda doce, inda altíssona, inda grande;
Posto que dias maus, perversas línguas,
P’rigos sem conto e trevas me circundam
Na solidão... Mas não: só não me encontro;
Tu me acompanhas, sacrossanta Musa,
Enquanto gozo do ligeiro sono
E dês’que surge a aurora purpurina.
Meu canto sempre, ó tu, dirige, Urânia:
Hábeis ouvintes dá-me, inda que poucos;
Mas lança longe o bárbaro alarido
Dessas bacantes loucamente alegres,
Cuja terrível ascendência outrora
No Ródope estroncou o Trêicio bardo
Que encantava os rochedos e as florestas
De sua voz coa mágica doçura,
Té que o rudo clamor da turba fera
Os sons da lira e o canto lhe sufoca.
Não pôde a Musa defender seu filho;
Mas tu, a quem te implora, vales sempre:
De fantástico sonho ela não passa,
Tu de existência real no Empíreo gozas.
Conta, ó Deusa, os sucessos que ocorreram
Depois que Rafael, a Adão mostrando
Com meigo aviso o temeroso exemplo
Feito nos Céus aos anjos rebelados,
Lhe aconselhou de cauto premunir-se
E a prole sua contra o crime enorme
De comer frutos da árvore vedada,
Sob pena de incorrer na mesma ruína
Se tão fácil preceito postergassem,
Quando podiam em mil outros frutos
Saciar os mais variados apetites.
Atento ouviu Adão, tendo Eva ao lado,
A história que, de Deus perto do trono,
Do Empíreo nas pacíficas moradas,
Lhe traçou com atônita surpresa
Discórdias, confusões, guerras, estragos.
À primeira impressão de tais sucessos,
Dúbio de Adão o entendimento nuta;
Mas logo refletiu que, não podendo
Ao bem unir-se o mal, força é que volte
Para os perversos em que teve origem,
Como um rio que às fontes regressasse.
Assim todas as dúvidas repele.
Mas saber tenta com desejo inócuo
Como, por que, de que, por quem e quando,
Tenha sido criado este Universo
Que de Terra e de Céus composto encara;
O que existia dentro e fora do Éden
Antes dele gozar o bem da vida;
De imediato interesse altos objetos.
Qual viandante sequioso, debruçado
Sobre límpido arroio trepidante,
Mitigada mas não extinta a sede,
Pita ambicioso as ondas que o convidam
Co’o brando arruído a que de novo beba, —
Tal vai Adão interrogando o arcanjo:
— “Portentosos sucessos inauditos
Nos tens contado, empíreo mensageiro:
Quanto deste orbe alheios se me antolham!
Tu, de Deus por favor, dos Céus baixaste
Para avisar-nos, a oportuno tempo,
De tudo que, a não ser por nós sabido,
A nossa ruína ocasionar pudera.
Devemos dar a Deus eternas graças,
Munidos de propósito solene
De imutáveis cumprir-lhe as leis augustas,
Que têm por fim o bem da humana prole.
Mas tu, — que afável, com bondade tanta,
Nos tens instruído de sucessos onde
Não alcança o mundano entendimento,
Posto em sabê-los muito utilizarmos
Segundo ao juízo pareceu do Eterno, —
Mais abaixo descer digna-te agora:
Relata, o que nos é de igual proveito,
Como tiveram estes Céus princípio
Que em tão longínqua altura se nos mostram
Cheios de fogos móveis, sem quantia;
E este ar que, vastamente derramado,
Ocupa o espaço inteiro, cede a tudo,
E esta florida terra em torno abraça;
Que tempo têm da Criação as obras;
Em quanto tempo se ultimaram elas;
E por que Deus se decidiu tão tarde,
Gozando de repouso sacrossanto
Até então por toda a eternidade,
A fabricar no Caos o Universo.
Dize-nos pois, se te não é vedado
(Não que de Deus nos eternais arcanos
Entrar instemos com profana audácia!
Mas, quanto mais soubermos seus prodígios,
Por tantas causas mais o louvaremos).
Do seu curso inda ao Sol resta metade;
Para ouvir teus acentos majestosos
Tem vagaroso remanseado o giro,
E inda o fará por que de ti escute
Como foi feito, e como do atro Abismo
Se ergueu recém-nascida a Natureza:
Ou para ouvir-te se mais pronto acorrem
Vésper e a Lua, certo hão de acatar-te
A noite silenciosa, atento o sono,
Té que, findado teu augusto canto.
Aos Céus te leve da manhã o brilho.”
Dest’arte Adão implora o arcanjo ilustre,
Que se compraz de assim satisfazê-lo:
— “Sim; cumpro tua cauta rogativa:
Porém... de Deus para contar as obras
Que língua ou termos bastam, mesmo de anjos?
Para entendê-las na grandeza sua
Acaso basta a concepção humana?
Contudo, espera ouvir quanto é mais próprio
Para glorificares o alto Nume
E obteres dita em grau possível no homem.
Do Onipotente recebi poderes
Para, dentro de metas circunscritas,
Cumprir o anelo de saber que mostras;
Porém delas além nada perguntes:
A perspicácia tua em tais matérias,
Somente é dado percorrer humilde
Onde a revelação caminho lhe abra,
Quanto nas trevas suprimido tenha
O rei oculto, o só que tudo sabe,
Ninguém pode indagar no Orbe, no Empíreo.
Contudo, assaz a indagação humana
Tem por onde ambiciosa se apascente:
Porém a ciência temperança exige;
Deve saber-se o que somente baste
Para do entendimento encher as metas,
Mas não com imprudência transpassá-las:
Se a nímia cópia de alimento gera
Perturbações que a máquina desmancham,
A nímia ciência torna-se em loucura.
Atenta pois no que ora te revelo.”
“Depois que, atravessando o fundo abismo,
Dos Céus caiu nos cárceres do Averno
C’o os exércitos seus das trevas o anjo
(Té então sendo Lúcifer chamado
Porque dos anjos era nas coortes
Mais fulgurante que da tarde a estrela
Entre as estrelas de que a noite se orna),
E o Nume-Filho regressou ovante
Co’os santos seus dos campos da vitória, —
O Onipotente Pai, do alto do trono,
Deles a imensa multidão contempla,
E dest’arte se exprime ao filho amado:
— “Nosso inimigo se enganou julgando
“As hostes celestiais todas rebeldes,
“Pelas quais socorrido nos lançasse
“Deste iminente alcáçar inacesso,
“Estância da suprema divindade.
“Contudo, conseguiu que em torpe engano,
“Em ciladas sutis caíssem muitos
“Que hoje nos sítios seus o Céu não acha:
“Vejo porém que dos empíreos coros
“A maior parte se manteve fida.
“Sei que este nosso império populoso
“Tem, para povoar seus reinos amplos
“E para celebrar os sacros ritos
“Neste alto templo, junto destas aras,
“Multidão suficiente de habitantes:
“Mas — para que esse pérfido invejoso
“Não blasone com feros insolentes
“Que despovoou dos Céus o imenso espaço,
“E que ao insulto, que me fez, unira
“Em detrimento meu pesares, danos, —
“Eu, reparando semelhante perda
“(Se é tal perder perversos tão perdidos),
“Vou num momento fabricar um Mundo
“Em que, de um só casal da estirpe humana,
“Inumeráveis povos se originem:
“Ali têm de morar té que, elevados
“Por claras provas de obediência longa,
“Por graus de não equívocas virtudes,
“Se abram caminho e entrar no Empíreo venham.
“Sendo um só reino então, sendo um só todo
“Terra e Céu, transmudada em Céu a Terra,
“Todos desfrutarão, de Deus no grêmio,
“Interminável paz, eterna dita.
“No entanto, ó vós, celestes potestades,
“Gozai de toda a vastidão do Empíreo.
“E tu, meu Verbo, Filho meu dileto,
“Farás em meu lugar quanto medito:
“Fala e verás que te obedece tudo.
“Meu poder, meu espírito que abrangem
“Coa sombra sua as existências todas,
“Contigo mando; vai, traça, constrói,
“Em parte desse Abismo ilimitado,
“O Céu e a Terra com limites próprios:
“Vai; sou quem sou; a imensidade ocupo;
“Não há vazio para mim no espaço;
“Incircunscrito sou, — porém escondo
“Em mim, quando me apraz, meus atributos;
“Fogem de mim necessidade e acaso;
“Na mente, nas ações, no ócio, sou livre;
“Minhas ordens o fado constituem.”
O Pai Onipotente assim se expressa,
E logo o Nume-Filho as ordens cumpre.
São imediatas as ações do Eterno;
Vão do tempo e do moto além do alcance;
Porém do homem terreno elas não podem
Entrar no ouvido, penetrar na mente,
Sem que as narre uma série de palavras.
Júbilo grande, pompas de triunfo
O Céu mostrou assim que foi do Eterno
Ouvida a decisão. Todos entoam:
— “Glória ao supremo Deus, autor de tudo!
“Boa vontade nos futuros homens,
“E paz ditosa nas moradas suas!
“Glória a Deus justiceiro que os perversos
“Expulsou, com benéfica vingança,
“De sua vista e habitações dos justos!
“Glória e louvor a Deus que, Onisciente,
“O bem tira do mal, criando e pondo
“No lugar dos espíritos malignos
“Prole melhor! Sua bondade alcance
“A séculos e mundos infinitos!”
Assim cantaram os celestes coros.
No entanto pronto para a grande empresa
Eis ovante se mostra o Nume-Filho:
Do Eterno a onipotência, a majestade,
Com vívido esplendor o c’roa e cerca;
Da sapiência e do amor nele fulguram
As imensas, puríssimas torrentes;
Inteiro o Eterno está dentro em seu Filho.
Inumeráveis de seu coche em torno
Se difundiam querubins, virtudes,
Co’os serafins, dominações, e tronos.
Cada espírito tinha asas brilhantes,
E montava soberbo um carro alado
Dos imensos milhares, que, do Eterno
Nos arsenais, de bronze entre montanhas,
Desde evos longos se guardavam prestes
Para o cortejo dos solenes dias:
Era das rodas espontâneo o moto;
Animadas de espírito vivente,
Serviam seu senhor prontas, submissas.
De per si, par em par, no entanto se abrem
As imensas do Empíreo eternas portas,
Que, harmônicas rodando em quícios de ouro,
Dão passagem da glória ao Rei supremo,
Figurado em seu Verbo poderoso
Que vai dar existência a novos mundos.
Chega às margens do Céu o grão cortejo,
Donde descobre o Abismo imensurável
Que, semelhante ao mar, todo se agita
Escuro, destrutivo, furibundo,
Com repelões dos ventos açoitado,
Erguendo vagas que afiguram serras
Contra o Céu dirigidas, ameaçando
Mesclar-lhe em amplas ruínas eixo e pólos.
— “Silêncio, ó torvo mar! Sossega, Abismo!”
O Verbo disse; e logo, levantado
Dos querubins nas flamejantes penas,
Ornado todo coa paterna glória,
Voa e se entranha na extensão do Caos
Ao sítio onde existir devia o Mundo.
E respeitoso, o Caos a voz lhe acata,
E todo o seu cortejo ovante o segue
Para da Criação ver os prodígios,
De seu poder incomparáveis obras.
Ali as rodas férvidas suspende:
Então, pegando no compasso de ouro
(Que, preparado no arsenal do Eterno,
Guardado estava para em tempo fixo
Circunscrever os términos do Mundo),
Firma-lhe uma das pontas, e sobre ela
A outra vira em redor pelo amplo Abismo.
E disse:— “Os teus confins, ei-los, ó Mundo;
“Estende-te até’qui, daqui não passes.”
Deus, de uma vez, assim fez Céus e terra, —
Contudo inda matéria inerte e informe,
Do Abismo imersa na profunda noite.
Logo porém sobre as imóveis águas
O espírito de Deus, fonte da vida,
Abre as asas e infunde-lhe com elas
Vivificante, tépida virtude,
Que as fezes não vitais lhe precipita:
As concordes moléculas dest’arte
Em harmônico arranjo põe e ordena,
E os vários sítios das discordes marca:
Fica entre as massas o ar que extenso as cerca;
Sobre seu centro se equilibra o globo.
— “Haja luz” (disse Deus). Logo do Abismo
Nasceu a luz, porção do éter mais pura,
Da criação a cândida primícia
Que do nascente seu vem caminhando,
Pela extensão dos ares tenebrosos,
Dentro de um tabernáculo de nuvens.
Deus a viu e achou nela o que intentara.
Não havendo inda Sol, dispõe o Eterno
Que a luz num hemisfério se limite
Enquanto no outro a sombra se difunde:
À luz dia chamou, à sombra noite.
Assim composto de manhã e tarde
Foi o primeiro dia do Universo.
Os coros celestiais o celebraram
Assim que viram com ovante arroubo
A luz nativa rebentar das trevas:
De jubilosas explosões e de hinos,
Ao majestoso som das harpas de ouro,
Enchem o inteiro côncavo do Mundo
De Deus em honra, e Criador o aclamam.
De novo disse Deus: — “Dentre essas águas
“Avulta, ó firmamento, e umas das outras
“Dividam-se por ti em baixas e altas.”
Eis do ar mais puro e transparente um globo
Se forma ingente, côncavo, brilhante,
Chegando desta vasta redondeza
Aos remotos confins, barreira firme
Que as altas águas separou das baixas.
Bem como entre águas foi formada a terra,
Assim entre um oceano cristalino
Foi também fabricado o firmamento.
Dele em distância, que julgou precisa,
Deus afastou o turbulento Caos
Para de suas margens as desordens
Não arruinarem, sendo-lhe contíguas,
A fábrica do Mundo. Então o Eterno
Ao firmamento deu de Céus o nome;
E os coros cantam o segundo dia
Também constando de manhã e tarde.
Formada estava a terra, mas oculta,
Imaturo embrião, dentro das águas
Que tépidas, prolíficas, a banham,
Pouco a pouco a textura lhe amolecem.
No fluido produtor toda embebida
A grande mãe-comum então fermenta;
E, vendo-a Deus a concepções disposta,
— “Águas, que subjazeis ao firmamento,
“Num só local vos congregai” — eis disse —
“E enxuta desde já mostra-te, ó terra.”
Fora das águas de repente surgem
Vastas montanhas, cujos crespos ombros
Até dentro das nuvens se alevantam,
E cujos topes pelos Céus se escondem.
Tão altas sobem túmidas as serras,
Quanto profundos, amplos, escabrosos
Descem alcantilados precipícios
Que às águas próprio leito proporcionam.
As fluidas massas logo ovantes correm
Buscando esses declives, enroladas
Como no seco pó gotas da chuva.
Quais das trombetas ao clangor marchando
Os exércitos, já por mim contados,
Avançam co’os pendões que no ar fuzilam —
Assim da aquosa multidão as massas,
Rolando umas sobre outras, se despenham
Das altas catadupas, ou pausadas
Através de planícies vão descendo, —
Umas, erguidas de cristal quais muros,
Outras, rochas a prumo afigurando:
Deu-lhes tal força o espírito divino.
Debalde as obstam montes e penhascos;
Sempre fluida torrente passo encontra,
Já serpeando em circuitos, vagos, amplos,
Já penetrando a umedecida terra,
Em profundos canais arrebatada:
Lá mais a mais os caudalosos rios
Vão engrossando até que altivos entram
No imenso abismo do agregado fluido.
Deus chamou terra ao árido elemento,
E mar ao receptáculo das águas.
Depois nas obras prosseguiu, dizendo:
— “Cobre-te, ó terra, de árvores, de plantas
“Que te adornem co’um manto de verdura,
“Dotadas, cada qual, como lhe é próprio,
“De folhas, flores, de sementes, frutos.”
Apenas acabou, súbito a terra,
Té’li desagradável, erma, nua,
Brota relva que a inteira superfície
Lhe tapiza de nítida verdura:
Todas as plantas súbito florescem
De mil cores mostrando a variedade,
E mil gratos aromas exalando.
Logo as videiras bastas se carregam
De purpurinos ou de argênteos cachos;
Cresce a rojo a cheirosa abobadeira:
Searas se elevam em batalha postas;
E vão surdindo com modesto anelo,
A sarça emaranhada, o humilde arbusto;
Levantam-se depois, como osciladas,
As corpulentas árvores, curvando
Os longos ramos co’o pendor dos frutos,
Ou já brotando recendentes flores;
De altas florestas c’roam-se as montanhas;
De mirtos se ornam, de rosais sombrios,
As claras fontes, os amenos vales;
De brancos choupos ornam-se as ribeiras.
Assim, parelha ao Céu, mostra-se a Terra
Pomposa habitação digna de Numes:
E, — se inda a não rociava a chuva fértil,
Nem para a cultivar havia homens,
Contudo, dela mesma se elevavam
Largas névoas de mádidos vapores
Que, baixando depois, umedeciam
Os tenros germes que inda o chão esconde,
O arbusto, a relva, a planta inda sem caule.
Deus viu bom tudo; — e assim se terminaram
Manhã e tarde do terceiro dia.
De novo toma o Altíssimo a palavra:
— “Astros, surgi, brilhai no firmamento,
“Do claro dia, separai a noite;
“Dai luz à Terra, assinalai os giros
“Dos dias, meses, estações, dos anos.”
Disse; e assim fez-se. Logo rutilaram
Dois grandes astros na extensão celeste
Para alumiar, por alternados turnos,
Os dias o maior, as noites o outro:
Mostraram-se depois no firmamento
As estrelas que ao dia se recusam
E que ressurgem nítidas de noite,
A luz assim das trevas separando.
Nas obras suas atentando o Eterno
Achou serem da fábrica sublime.
Formou primeiro o Sol, grandiosa esfera,
Substância etérea mas opaca ainda;
Logo a Lua; depois essas estrelas
Que, de grandeza vária, pelo Empíreo
Bastas semeou, quais pelo prado flores.
Da luz a maior parte então tirando
Desse seu tabernáculo de nuvens,
Pô-la no orbe do Sol, poroso e firme
Para embeber o fluido refulgente
E o foco lhe suster de imensos raios,
Da luz ficando o majestoso templo.
Como de rica fonte, dela tiram
Em urnas de ouro a luz com que se ufanam
Os demais astros que lhe são submissos, —
Assim, à custa de seu brilho e cores,
Doura-se e fulge da manhã a estrela
E as outras todas que, por mui remotas,
À vista humana tênues se afiguram.
Súbito o Sol resplendeceu no oriente;
Rei do dia, com seu fulgor dourado
O âmbito inteiro ocupa do horizonte,
E ovante o giro seu perfaz no Empíreo:
Vêm diante dele com mimoso influxo
A branca Aurora e as Plêiades dançando.
Fronteira no ocidente viu-se a Lua;
Do Sol espelho, menos rutilante,
Dele enche co’o fulgor seu pleno disco,
E some-se à medida que se adianta
No firmamento a lâmpada do dia, —
Té que a noite no oriente clara fulge
Do grande eixo do Céu passeando em torno,
E com milhões de estrelas, que abrilhantam
De menos viva luz todo o hemisfério,
Seus poderes benéfica reparte.
Então, ornadas pela vez primeira
De astros brilhantes que, em regrado giro
Sobem e descem do horizonte a escarpa,
Deliciosa a manhã e a tarde amena
Formam o quarto dia jubilosas.
Torna Deus a dizer: — “Enchei-vos, águas,
“De vivente, prolífica progênie,
“E sobre a terra, no amplo firmamento
“Abri as penas, o ar fendei, ó aves.”
Logo nas águas e no espaço do éter
Os tipos das espécies nadam, voam,
Vários em castas, vários em tamanhos.
Deus vendo-os folga, e os abençoa, e diz-lhes:
— “Gerai fecundos, tende infinda prole,
“Peixes, nas águas; pássaros, na terra.”
Logo o alto mar, os golfos, as baías,
Os rios, as lagoas, se enchem, fervem
De cardumes de peixes sem quantia:
Uns, encorpados rasgam velozmente,
Nas barbatanas lúcidas librados,
Das verdes ondas o âmago flexível
E em grupos pelo mar assédios formam;
Outros, de menos vulto, ou sós ou pares,
Andam pascendo na alga, ou já vagando
De coral pelas rúbidas lamedas,
Ou viram para o Sol, brincando alegres,
De líquido ouro as úmidas espaldas
Que de vivos fulgores relampeiam;
Estes esperam em argênteas conchas
O úmido nutrimento descansados;
Aqueles, sob o abrigo de altas rochas
As próprias armas em comum juntando,
A presa sempre sôfregos pesquisam.
As nédias focas, os delfins curvados
Brincam e pulam nas macias ondas:
Outros de enorme vulto e gesto enorme,
Tardios removendo a mole vasta,
Profundamente os mares atormentam.
Lá se vê, avultando ao longo, ao largo,
O Leviatã, aquático gigante,
A maior das viventes criaturas:
Quando dorme, assemelha um promontório;
Quando nada, parece ilha boiante;
Nas guelras sorve e pela tromba expele
Jorros de mar que altíssimos derrama.
No entanto as grutas, os pauis, as praias,
Incubam amornando os férteis ovos,
Que, dentro em breve de per si quebrados,
Ninhadas de aves dão à luz sem conto:
Primeiro piam, nuas, pequeninas;
Logo se emplumam estendendo as asas
E, no ar sublime voando clangorosas,
Da Terra deixam longe o globo opaco
Parecendo-lhes nuvem sotoposta.
A águia, a cegonha, ali fundam seus ninhos
Nos cimos dos penhascos, sobre os cedros:
Outras aves além às sós no espaço,
Voam como lhes praz; mais cautas outras,
Das estações reconhecendo os turnos,
Em colunas maciças se encorporam
E assim, compondo aéreas caravanas,
Coas asas se prestando auxílio mútuo,
Atravessam regiões, transpõem mares:
Governam desta sorte os grous previstos
Seu giro anual na direção dos ventos;
E ao crebro adejo das imensas asas
Oscilam flutuando os campos do éter.
De menos corpo as aves, todo o dia,
Esvoaçando com penas multicores.
De ramo para ramo alegres pulam
E cantando recreiam as florestas:
De melodia nem carece a noite
Que, enquanto dura, docemente a encanta
Com seu trinado o rouxinol solene.
Outros nos rios, nos argênteos lagos,
Banham os peitos de macia pluma:
Nota-se entre estes o soberbo cisne
Que, em arco, erguendo com galhardo porte,
O colo níveo sobre as níveas asas,
Rema co’os ágeis pés e as ondas fende,
Assim passeando em majestosa pompa, —
Ou, já deixando o aquático remanso,
Nas firmes asas libra-se e remonta
Às alturas do etéreo firmamento.
Outros com pé seguro a terra pisam,
Como o cristado galo que repete
Com seu forte clarim da noite as horas, —
E o formoso pavão que se adereça
Com longa cauda ovante aberta em orbe,
Do íris coas flóreas cores matizado,
Todo esparzido de estrelados olhos.
Assim com aves o ar, com peixes a água,
Brilham ovantes, e do quinto dia
Solenizaram-se a manhã e a tarde.
Da tarde e da manhã ao som das harpas,
Refulgente assomou o sexto dia,
Dia da criação o derradeiro:
E assim se expressou Deus: — “Produze, ó Terra,
“Teus próprios animais que sejam tipos
“De suas variadíssimas espécies.”
Eis obediente a terra, o seio abrindo,
Deu logo à luz viventes numerosos,
Perfeitos como são na idade adulta.
Como do seu covil, ergue-se e rompe
O feroz animal de sob a terra
Nas matas, nas florestas, nas balseiras,
Ovantes por ali passeando a pares:
Dalém a grei levanta-se já mansa
Dos verdes campos, dos floridos prados;
Uns em rebanhos, solitários outros,
Tão depressa nasceram, vão pastando.
Lá se entumecem os torrões relvosos,
E dentre eles o fulvo leão jubado
Ergue o peito, no chão as garras ferra,
E, nelas firme, pelas ancas puxa
Té que de todo com violência nasce
Como se férreos vínculos rompesse,
E soberbo sacode a juba hirsuta.
A onça, o leopardo, o tigre, o chão abrindo,
Surdem como a toupeira, sublevando
A terra que arremessam pulverosa,
E em montículos fica partilhada.
Ali do cervo alípede aparece
A ramosa cabeça e logo todo:
Ajoujado coa própria corpulência,
Dificilmente de seu molde surge
O Beemoth, da terra o maior filho:
Quais plantas os lanígeros rebanhos
Saem fora do chão, balam, retouçam,
Vivendo por igual no mar, na terra,
Assim nasce o conchado crocodilo,
E o dentado hipopótamo sanhudo.
A um tempo em muitas partes penetrando,
Rojam, gozando a luz, répteis e vermes:
Uns são alados; outros em vez de asas
Ostentam lindos, agitados leques;
E quase todos fúlgidos se enfeitam
De mui tênues debuxos mas exatos,
Feitos nas cores do vistoso estio;
Nuns o ouro brilha, a púrpura se acende,
Noutros agrada o verde, o azul encanta.
Desenvolvendo dimensão comprida
Estoutros vão listrando a branda terra
Com seus sinuosos rastos; nem é destes
A mais somenos prole entre os nascidos,
E muitos são serpentes formidáveis
De grande comprimento e vasta mole.
Que ora amplíssimas roscas alardeiam,
Ora adejam com asas membranosas.
Logo gira a econômica formiga,
De grande coração, pequeno corpo;
Cauta previne urgências do futuro;
Junta-se em tribos onde alcança a todos
Jus igual, perda igual, igual proveito;
Talvez por isso nos vindouros tempos
Venha a ser no governo dos humanos
Nobre modelo de igualdade justa.
Depois vêm das abelhas os enxames;
Ali as fêmeas, que iudustriosas fazem
Co’o mel nectáreo, que das folhas tiram,
Da crócea cera os celulosos favos,
O ocioso esposo com regalos nutrem.
Quanto aos demais, supérfluo é relatar-tos,
Pois que lhes deste os nomes que os distinguem
E as índoles cuidoso lhes notaste:
Não te escapa sem dúvida a serpente,
Mais sutil animal dos campos todos;
Adquire às vezes extensão enorme,
Olhos revolvem que parecem brasas
E irada encrespa a temerosa crista;
A ti, contudo, guarda-te respeito, —
Acode ao brado teu submissa e pronta.
Então em plena pompa os Céus brilhavam:
Pela impulsiva direção, que dera
O grão-motor, os orbes se dirigem,
No âmbito azul girando reluzentes.
Vendo-se terminado, belo e rico,
O térreo globo de prazer exulta;
Pelos ares serenos voam aves;
Pelas argênteas águas nadam peixes;
Pela terra frutífera caminham
Répteis, insetos, vermes e quadrúpedes.
Mas perfeito de todo o sexto dia
Não era; uma obra-prima lhe faltava,
De toda a criação remate augusto, —
Vivente que, dos brutos mui diverso,
De santidade e de razão dotado,
Sua origem sublime conhecendo,
Sustido a prumo, aos Céus levante a fronte
E sobre as outras criaturas reine, —
Que, do supremo Deus, que o fez tão nobre,
Aos benefícios grato, lhe tribute
Respeito, amor, adoração e preces,
Por tal correspondência portentosa
Aos sublimados Céus ligando a Terra.
O Onipotente então, que abrange tudo,
Em plena corte fala ao Nume-Filho:
— “Façamos o homem; nele resplandeça
“A semelhança nossa, a nossa imagem;
“Como em domínios seus ele governe
“Em toda a terra, nos viventes todos.”
Disse: — e do pó da terra, Adão, formou-te,
Suas próprias feições em ti moldando;
O alento divinal deu-te da vida.
Criou depois a companheira tua.
Então, abendiçoando a espécie humana:
— “Crescei, multiplicai, enchei a terra”
(Disse), “sobre ela dominai e em tudo
“Que nela, no ar, no mar, goza da vida.”
Desse lugar onde formado foste
(Inda os lugares nome então não tinham)
Aqui trouxe-te Deus, como bem sabes,
Para este almo jardim, delícias todo,
Plantado e cheio de árvores divinas,
Grato ao sabor, ao cheiro, à vista grato:
Dos frutos que produz inteiro o globo
Aqui tens as multíplices espécies;
Para sustento teu dispõe de todos.
Mas... da Árvore que o mal e o bem revela
A quem se atreva saborear-lhe os frutos...
Não é dado comer: olha o que fazes;
Se comes dela, nesse dia morres:
Tal pena impõe-se ao que esta lei transgride.
Teus apetites próvido regula;
Vigia, teme que hórridos te assaltem
Os dois sócios cruéis Pecado e Morte.
Aqui Deus terminou quanto fizera,
E a seus projetos viu conforme tudo:
Com os aplausos da manhã e tarde
Assim se terminou o sexto dia.
Então o Criador sempre incansável
Ao Céu dos Céus voltou donde no Mundo,
De seus domínios adição recente,
Os olhos alongasse e visse o aspecto
Que esse globo magnífico daria
Visto da altura do superno trono.
Sobe; sem conto aclamações o seguem,
E de vinte mil harpas o concerto,
Cuja harmonia angélica enlevava,
Tangiam sonorosos (bem te lembras)
As estrelas, os Céus, a Terra, os ares:
Os planetas pararam respeitosos
Enquanto ia subindo o grão cortejo.
— “Abri-vos, portas eternais, abri-vos,
“Dos Céus portas viventes” (descantavam
Todos os anjos em cadentes coros),
“Deixai entrar o Criador supremo
“Que vem de edificar uma obra insigne,
“O Universo, em seis dias completado:
“Desde hoje a miúdo abrir-vos-eis; o Eterno
“Designar-se-á de ir sempre complacente
“Santificar dos justos a morada
“E mandar-lhes, por vezes repetidas,
“Seus alígeros núncios que lhes levem
“De sua graça os divinais tesouros.”
Assim subiam pelo etéreo espaço
Ao Céu que abrira seus portões fulgentes;
E, entrando-os, vão de Deus ao sacro alcáçar
Por ampla estrada reta, onde brilhando
É ouro o pó, o pavimento estrelas,
Como na Láctea Via que de noite
Vês em forma de zona os Céus cingindo
De inúmeras estrelas semeada.
Eis a sétima tarde surge no Éden:
Já se escondera o Sol: núncio da noite
Já do oriente o crepúsculo subia, —
Quando ao monte dos Céus o mais excelso,
Onde de Deus o trono inabalável
Por toda a eternidade se sustenta,
Chegou o Nume-Filho: então sentou-se
Junto ao Pai que dali, sem levantar-se,
Fez, presenciou as obras invisível,
Porque enche imenso as existências todas,
De tudo sendo o autor e o fim de tudo.
Consagrado ao repouso e abendiçoado
Foi o sétimo dia pelo Eterno,
Porém não em silêncio; a doce flauta,
A harpa solene, o tímpano sonoro,
Os graves órgãos, enchem de harmonia
A vastidão do Empíreo sacrossanto,
Concertados com cânticos augustos;
Ora de um coro as variações abalam;
Ora enleva de um solo a melodia,
Enquanto áureos turíbulos acesos
Nuvens de aromas dão que o monte ocultam.
— “Jeová soberano!” (os Céus dest’arte
Cantam da Criação as maravilhas)
“Quão magníficas são as obras tuas!
“Teu supremo poder não tem limites!
“Que entendimento compr’ender-te pode?
“Que língua ousa contar os teus prodígios?
“Quando co’os raios teus em pó fizeste
“Os soberbos arcanjos rebelados,
“Decerto foste imensamente grande;
“Mas, vindo agora de formar um Mundo,
“Fulguras muito mais, maior te vemos.
“Destruir pode ser ação heróica;
“Mas criar é de glória mais subida.
“Prejudicar-te, limitar teus reinos
“Ninguém pode, monarca poderoso:
“Da infiel apostasia derrotaste
“Empresas arrogantes, vãos conselhos
“Ao passo que ela imaginava insana
“Pôr teu império em ruínas e roubar-te
“De adoradores teus porção imensa.
“Projetos contra ti executados
“Só servem de realçar teus atributos.
“Do mal que urdiram tenebrosos anjos
“Tiraste um bem maior criando um Mundo,
“Que vemos outro Céu dos Céus às portas,
“Vasto, brilhante, de cristal num lago,
“Recamado de estrelas sem quantia,
“Das quais talvez cada uma um Mundo seja
“Que devam habitar viventes próprios.
“Dele a clara porção tu bem distingues,
“O térreo globo, habitação dos homens,
“Grato, formoso, de delícias cheio,
“Tendo em redor o subjacente oceano.
“Oh! mil vezes feliz a humana prole
“Que Deus criou à semelhança sua
“Para morar nesse Éden e adorá-lo,
“Dominando, nas águas, no ar, na terra,
“Da criação inteiros os produtos,
“Multiplicando a raça justa e santa
“De seus adoradores escolhidos!
“Oh! mil vezes feliz, se ela conhece
“A dita sua e se mantém virtuosa!”
Os coros celestiais assim cantaram;
O Céu ressoou de ovantes aleluias:
O sábado dest’arte foi guardado.
“Contei-te a formação deste Universo,
Das coisas a primeira perspectiva,
E os variados sucessos que ocorreram
Antes que a luz da vida tu gozasses:
Esta história transmite a teus vindouros.
Se queres saber mais, — não excedendo
Da mente do homem os limites, — fala.”