POESIA PAU BRASIL

 

A poesia « pau-brasil » é o ovo de Colomboesse ovo, como dizia um inventor meu amigo, em que ninguem acreditava e acabou enriquecendo o genovez. Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier du Place Clichy — umbigo do mundo — descobriu, deslumbrado, a sua propria terra. A volla á patria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surprehendente de que o Brasil existia. Esse facto, de que alguns já desconfiavam, abrio seus olhos á visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e mysterioso. Estava creada a poesia « pau-brasil ».

Já tardava essa tentativa de renovar os modos de expressão e fontes inspiradoras do sentimento poetico brasileiro, ha mais de um seculo soterrado sob o peso livresco das ideas de importação. Um dos aspectos curiosos da vida intellectual do Brasil é esse da litteratura propriamente dita, ter evoluido acompanhando de longe os grandes movimentos da arte e do pensamento europeus, emquanto a poesia se immobilizou no thomismo dos modelos classicos e romanticos, repetindo com enfadonha monotonia, as mesmas rimas, metaphoras, rythmos e allegorias. Veio-lhe sobretudo o retardo no crescimento do mal romantico que, ao nascer da nossa nacionalidades, infeccionou tão profundamente a tudo e a todos. Com a partida para fóra da colonia do lenço de alcobaça e da caixa de rapé de d. João VI, emigraram por largo tempo deste paiz o bom senso terra a terra e a visão clara e burgueza das coisas e dos homens.

Em politica o chamado « grito do Ypiranga » inaugurou a deformação da realidade de que ainda não nos libertamos e nos faz viver num como sonho de que só nos accordará alguma catastrophe bemfeitora. Em litteratura, nenhuma outra influencia poderia ser mais deleteria para o espirito nacional. Desde o apparecimento dos « Suspiros poeticos e Saudades », de Gonçalves de Magalhães, que os nossos poetas e escriptores, até os dias de hoje, têm bebido inspirações no craneo humano cheio de bourgogne com que se embebedava Child Harold nas orgias de Newstead. O lyrismo puro, simples e ingenuo, como um canto de passaro, só o exprimiram talvez dois poetas quasi desprezados — um, Casimiro de Abreu, relegado á admiração das melindrosas provincianas e caixeiros apaixonados, outro, Catullo Cearense, trovador sertanejo, que a mania litteraria já envenenou. Foram esses, melancolicos, desalinhados e sinceros, os dois unicos interpretes do rythmo profundo e intimo da Raça, como Ronsard e Musset na França, Mœriken e Uhland na Allemanha, Chaucer e Burns na Inglaterra, e Whitman nos Estados Unidos. Os outros são lusitanos, francezes, hespanhoes, inglezes e allemães, versificando numa lingua extranha que é o portuguez de Portugal, esbanjando talento e mesmo genio num desperdicio lamentavel e nacional.

O verso classico :

 

Sur des pensers nouveaux, faisons des vers antiques

 

está tambem errado. Não só mudaram as idéas inspiradoras da poesia, como tambem os moldes em que ella se encerra. Encaixar na rigidez de um soneto todo o baralhamento da vida moderna é absurdo e ridiculo. Descrever com palavras laboriosamente extrahidas dos classicos portuguezes e desentranhadas dos velhos diccionarios, o pluralismo cinematico de nossa epoca, é um anachronismo chocante, como se encontrassemos num Ford um tricornio sobre uma cabeça empoada, ou num torpedo a alta gravata de um dandy do tempo de Brummel. Outros tempos, outros poetas, outros versos. Como Nietsche, todos exigimos que nos cantem um canto novo.

A poesia « pau-brasil » é, entre nós, o primeiro esforço organisado para a libertação do verso brasileiro. Na mocidade culta e ardente de nossos dias, já outros iniciaram, com escandalo e successo, a campanha de liberdadé e de arte pura e viva, que é a condição indispensavel para a existencia de uma litteratura nacional. Um periodo de construcção creadora succede agora ás lutas da epoca de destruição revolucionaria, das « palavras em liberdade ». Nessa evolução e com os caracteristicos de suas individualidades, destacam-se os nomes já consagrados de Ronald de Carvalho, Mario de Andrade e Guilherme de Almeida, não falando nos rapazes do grupo paulista, modesto e heroico.

O manifesto de Oswald, porém, dizendo ao publico o que muitos aqui sabem e praticam, tem o merito de dar uma disciplina ás tentativas esparsas e hesitantes. Poesia « pau-brasil ». Designação pitoresca, incisiva e caricatural, como foi a do confettismo e fauvismo para os néo-impressionistas da pintura, ou a do cubismo n’estes ultimos quinze annos. E’ um epitheto que nasce com todas as promessas de viabilidade.

A mais bella inspiração e a mais fecunda encontra a poesia « pau-brasil » na affirmação desse nacionalismo que deve romper os laços que nos amarram desde o nascimento á velha Europa, decadente e exgolada. Em nossa historia já uma vez surgio esse sentimento aggressivo, nos tempos turbados da revolução de 93, quando « pau-brasil » era o jacobinismo dos Tiradentes de Floriano. Sejamos agora de novo, no cumprimento de uma missão ethnica e protectora, jacobinamente brasileiros. Libertemo-nos das influencias nefastas das velhas civilisações em decadencia. Do novo movimento deve surgir, fixada, a nova lingua brasileira, que será como esse « Amerenglish » que citava o Times referindo-se aos Estados-Unidos. Será a rehabilitação do nosso falar quotidiano, sermo plebeius que o pedantismo dos grammaticos tem querido eliminar da lingua escripta.

Esperemos tambem que a poesia « pau-brasil » extermine de vez um dos grandes males da raça — o mal da eloquencia balofa e roçagante. Nesta epoca apressada de rapidas realisações a tendencia é toda para a expressão rude e núa da sensação e do sentimento, numa sinceridade total e synthetica.

 

« Le poète japonais
Essuie son couteau :
Cette fois l’éloquence est morte ».

 

diz a haïkaï japonez, na sua concisão lapidar. Grande dia esse para as lettras brasileiras. Obter, em comprimidos, minutos de poesia. Interromper o balanço das bellas phrases sonoras e ôcas, melopea que nos approxima, na sua primitividade, do canto erotico dos passaros e dos insectos. Fugir tambem do dynamismo retumbante das modas em atrazo que aqui aportam, como o futurismo italiano, doze annos depois do seu apparecimento, decrepitas e tresandando a naphtalina. Nada mais nocivo para a livre expansão do pensamento meramente nacional do que a importação, como novidade, dessas formulas exoticas, que envelhecem e murcham num abrir e fechar de olhos, nos cafés literarios e nos cabarets de Pariz, Roma ou Berlim. Deus nos livre desse snobismo rastacuerico, de todos os « ismos » parasitas das ideas novas, e sobretudo das duas inimigas do verdadeiro sentimento poetico — a Litteratura e a Philosophia. A nova poesia não será nem pintura, nem esculptura, nem romance. Simplesmente poesia com P grande, brotando do solo natal, inconscientemente. Como uma planta.

O manifesto que Oswald de Andrade publica encontrará nos que têm (essa infima minoria) escarneo, indignação e mais que tudo — incomprehensão. Nada mais natural e mais razoavel : está certo. O grupo que se oppõe a qualquer idéa nova, a qualquer mudança no ramerrão das opiniões correntes é sempre o mesmo : é o que vaiou o Hernani de Victor Hugo, o que condemnou nos tribunaes Flaubert e Baudelaire, é o que pateou Wagner, escarneceu de Mallarmé e injuriou Rimbaud. Foi esse. espirito retrogrado que fechou o Salon official aos quadros de Cézanne, para o qual Millerand pede hoje as honras do Panthéon; foi inspirado por elle que se recusou uma praça de Pariz para o Balzac de Rodin. E’ o grupo dos novos-ricos da Arte, dos empregados publicos da literatura, Academicos de fardão, Genios das provincias, Poetas do « Diario Official ». Esses defendem as suas posições, pertencem à maçonaria da Camaradagem, mais fechada que a da politica; agarram-se ás taboas desconjuntadas das suas reputações : são os bonzos dos templos consagrados, os santos das capellinhas litterarias. Outros, são a massa gregaria dos que não comprehendem, na innocencia da sua curteza, ou no ajastamento forçado das coisas do espirito. Destes falava Rémy de Gourmont quando se referia a « ceux qui ne comprennent pas ». Deixemol-os em paz, no seu contentamento obtuso de pedra bruta, ou de muro de taipa, inabalavel e empoeirado.

Para o glú-glú desses perús de roda, só ha duas respostas : ou a alegre combatividade dos moços, a verve dos enthusiasmos triumphantes, ou para o scepticimo e o aquoibonismo dos já descrentes a cançados o refugio de que falava o mesmo Gourmont, no Silencio das Torres (das Torres de marfim, como se dizia).

 

Maio, 1924.

 

Paulo PRADO.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.