Entre as criações míticas da Grécia antiga, as que mais contribuíram para a formação da civilização ocidental são as configurações de Apolo e Dioniso, que estão ao centro de duas concepções de vida. Apresento alguns traços da “biografia” ficcional dos dois deuses, que apontam sentidos possíveis de vida, a partir de seus símbolos. Apolo, também chamado de Febo (deus da luz), Hélios (nuance das cores) e Sol (solus = o único), nasceu de uma relação adúltera de Júpiter com a jovem Latona, que por isso foi perseguida pela ciumenta Juno. O deus-astro tinha a missão de trazer para a terra a luz, o calor e a vida. Diariamente, um coche dourado transportava o Sol para o alto do céu e, à noite, guardava-o atrás das montanhas. O Cosmo devia a ele não só a alternância dia / noite, mas também a mudança das estações: o inverno era causado pela ausência de Apolo, que ia passar férias no extremo norte do planeta.
Apolo era uma divindade essencialmente luminosa: pela luz cósmica, protegia a vida vegetal, animal e humana (patrono dos agricultores, dos pastores e dos navegantes); pela luz intelectual, era o protetor dos médicos e dos artistas; pela luz divina, era o deus dos oráculos, desvendando os mistérios da natureza. Apolo, com a musa Calíope, gerou Orfeu, poeta e músico, venerado pelos gregos porque seu canto abrandava a dor e fascinava homens e animais. A dor de Orfeu pela morte da amada Eurídice constitui uma das páginas mais líricas da mitologia clássica.
Nas artes plásticas, Apolo é esculpido ou pintado como um belo jovem completamente nu ou coberto por arco e lira, com uma coroa de flores na testa. Tal iconografia de Apolo atesta o conceito de beleza clássica entendida como harmonia de formas: abstraindo de vários efebos (jovens bonitos) as partes corporais mais bem acabadas, os artistas gregos procuravam chegar à criação de um modelo de beleza masculina, universal e absoluta, em que o todo fosse resultante de partes harmonicamente estruturadas. Apolo é apresentado, portanto, como o deus de todas as faculdades criadoras de formas. A arte que nele se inspira — a apolínea -- tem como fundamento o sonho, a imaginação, a ilusão, um radical otimismo, a confiança nas forças do homem, considerado capaz de alcançar a vitória sobre o mal e a mentira.
Contrastando com o deus Apolo, Dioniso, o romano Baco, teve uma vida bastante acidentada. Conforme o mito, ele foi duplamente filho de Júpiter, daí o apelido de ditirambo (“aquele que nasceu duas vezes”), que era também o nome do hino religioso a ele consagrado. O pai dos deuses, em outra aventura amorosa, seduziu a princesa tebana Sêmele. Sua esposa Hera, então, roída pelo ciúme, provocou a morte da bela jovem grávida de seis meses, instigando-a a solicitar que seu amante noturno lhe mostrasse sua verdadeira identidade. Ao ver o senhor dos deuses em toda sua majestade, Sêmele caiu fulminada, não suportando a intensidade luminosa dos raios celestes. Júpiter, então, realizou a primeira cesariana: abriu o ventre da princesa morta, recolheu o feto e, porque naquela época não havia estufas, com a mesma faca, fez um corte na sua coxa esquerda, onde colocou o prematuro, dando continuidade à gestação.
Fruto híbrido de um amor divino-humano, Dioniso não foi aceito no Olimpo e precisou conquistar o direito à imortalidade por suas próprias forças. Errou pelo mundo até então conhecido e conseguiu o caminho da glória pela descoberta da uva, ensinando os homens a produzirem o vinho. Tocando flautas ou tamborins, acompanhado pelo cortejo de sátiros, bacantes, centauros e pelos deuses Sileno e Pã, Baco propiciava aos homens e aos deuses alegria e felicidade. Enquanto durava o estado de embriaguez, seus devotos sentiam a presença do deus do vinho dentro de si e se deixavam levar pelos ritos orgíacos, entrando em transe histérico.
Dioniso sempre foi considerado pelos gregos como um deus subversivo, pois personificava a desobediência à ordem e à medida, a vida do instinto, a liberdade e o prazer sem limites, a inversão dos valores sociais. O espírito dionisíaco encontrou sua primeira manifestação artística no coro ditirâmbico que, segundo a maioria dos estudiosos da literatura grega, foi o embrião da tragédia antiga, quando o mito de Dioniso, no lugar de ser apenas cantado (poesia lírica) e contado (narrativa), passou a ser também encenado (teatro). As pessoas que compunham o coro dionisíaco se sentiam transformadas pela embriaguez e punham de lado a máscara social, manifestando sua verdadeira personalidade. No estado dionisíaco, nos momentos de excitação orgíaco, esquecido de seu status, o homem sentia-se membro de uma comunidade universal em que se quebravam as barreiras de classes. Assim, o homem divinizava-se, o escravo emancipava-se, a crueldade tornava-se prazer, o grotesco misturava-se ao sublime. Este espírito dionisíaco, vivido também nas saturnálias romanas, persiste em todas as manifestações carnavalescas da cultura ocidental.
O mito de Dioniso invadiu a Literatura e as outras Artes, ao longo da nossa história. A obra do filósofo-poeta alemão F. Nietzsche (1844-1900) está toda ela impregnada do espírito báquico, ele mesmo definindo-se um “demônio dionisíaco”. Duas de suas obras são fundamentais para entendermos a importância do mito de Baco na evolução do pensamento e da arte européia: A Origem da Tragédia e Assim falou Zaratustra. Nietzsche remete à oposição “apolíneo vs dionisíaco” duas posturas perante a vida: viver conforme a razão e as ideologias sociais (código cultural) ou de acordo com o instinto que privilegia a busca da satisfação individual (código natural).
O contraste entre as duas divindades está evidente no mito da disputa entre Apolo e Pã (deus dos bosques, amante da lua e, como Priapo, deus do sexo, participante do cortejo de Baco). A tensão representa não apenas a vitória da lira sobre a flauta, da música suave e harmoniosa sobre os acordos rudes, da beleza com relação a feiúra, mas também o triunfo da civilização grega sobre a barbárie asiática. Em psicanálise, usando a linguagem de Sigmund Freud, podemos associar o id (a força do instinto, o código natural) ao mito de Dioniso e o superego (o conjunto das normas culturais) ao mito de Apolo.