Pensar é preciso/I/Júpiter: o complexo do autoritarismo

“O Estado sou Eu” (Luís XIV)


Zeus na Grécia e Júpiter em Roma, o maior personagem da mitologia greco-latina foi definido pelo poeta grego Homero como “o pai dos deuses e dos homens”. A história lendária de Júpiter é muito semelhante à de seu pai Saturno, o que salienta o caráter repetitivo dos mitos. Como Saturno desposou a irmã Cibele, assim Júpiter casou-se com a irmã Juno (Hera). Mas, além deste matrimônio "legítimo", foram atribuídas a Zeus várias relações extraconjugais com deusas, ninfas e mulheres mortais, sendo inumerável sua prole. Sua fama de conquistador incorrigível aparece artisticamente retratada na comédia Anfitrião, do escritor romano Plauto, encenada no Brasil pela companhia teatral de Tônia Carrero e Paulo Autran com o título “Um deus dormiu lá em casa”.

A peça narra o estratagema usado por Júpiter para seduzir a linda e virtuosa Alcmena, a princesa de Micenas, casada com o soldado Anfitrião. Usando do seu poder divino, fez com que o jovem esposo fosse para a guerra. A seguir, tomando a figura de Anfitrião, Júpiter apareceu a Alcmena e fez amor com ela. Numa manhã, o marido verdadeiro estranhou a frieza sexual de Alcmena. Esta, então, disse-lhe que estava exausta, pois passara com ele tórridas horas de sexo quando, na noite anterior, o marido, ao voltar da guerra, lhe trouxera o rico colar que estava em cima da cômoda. A comédia termina com a revelação do engano, inocentando Alcmena pelo adultério. Na cultura ocidental, o personagem Anfitrião passou a significar o hospedeiro, aquele que faz as honras de casa.

Além da concupiscência, o pai dos deuses tinha como atributos a onipotência e a previdência. A iconografia o representa como homem maduro, majestoso, barbudo, que tem como emblema o raio (símbolo do domínio sobre as forças atmosféricas e de sua força vingativa), o cetro (o poder) e a águia (a longevidência). Na cultura grega, o correspondente humano ao autoritarismo do deus Zeus é Agamenão, o prepotente rei de Micenas, que se dispôs a sacrificar a filha Ifigênia, comandou a liga grega na guerra contra Tróia, brigou com o herói Aquiles e, ao retornar para sua pátria, foi assassinado pela esposa Clitemnestra.

Na Psicologia, o mito de Júpiter passou a exprimir o arquétipo do chefe da família patriarcal, denominando-se "complexo de Júpiter" à tendência do subconsciente ao autoritarismo, que pode se encontrar na figura do governante, do juiz, do pai, do marido, do professor. A experiência da vida em sociedade nos ensina que o abuso do poder cria neuroses que atacam principalmente os homens públicos. Todo autoritarismo, de esquerda ou de direita, acaba estabelecendo relações desumanas, estimulando a corrupção e a violência. O despotismo se encontra não apenas nos governos absolutistas (monarquias hereditárias, ditaduras militares, oligarquias religiosas), mas também em regimes democráticos.

No Brasil, podemos apontar casos recentes de manifestação pública do mito de Júpiter: um coronel do exército que interrompe a decolagem de um avião civil e ordena que dois passageiros cedam seus lugares para ele e a esposa; um juiz do Supremo Tribunal Federal que manda calar a boca a um depoente numa seção de Comissão Parlamentar de Inquérito; um Ministro de Estado que solicita a quebra do sigilo bancário de um caseiro; Presidentes da República, Governadores e Prefeitos que usam a máquina do Estado para se reeleger.

Outras formas de atualização do mito de Júpiter podem ser encontradas no bullyng americano e na ação dos pitboys cariocas: um tipo de comportamento cruel e ameaçador, muito usado entre traficantes de drogas, marginais, presidiários. Infelizmente, a postura jupteriana é muito mais generalizada do que se possa pensar. Encontra-se na violência familiar e na prepotência dos poderosos, como também nos garotos musculosos que, especialmente depois de beber ou tomar drogas, praticam assédio sexual ou outras formas de intimidação. Enfim, sofre do complexo de Júpiter todo ser humano que lança mão da lei da selva, da razão do mais forte, não sendo educado a respeitar o direito e a vontade do semelhante.

A Suprema Corte do Afeganistão, país que se acha vítima da violência do sistema capitalista, recentemente, ratificou a condenação à morte do cidadão Abdul Rahman por ter rejeitado a fé islâmica. Que todos os fanáticos do mundo reflitam sobre o que disse Napoleão: “a maior parte daqueles que não querem ser oprimidos quer ser opressora”. Que dizer, então, do regime Talibã que ainda considera as mulheres propriedade do macho, podendo ser apedrejadas em praça pública, caso namorem fora do casamento? Infelizmente, apesar do reconhecimento dos direitos da mulher, o machismo ainda predomina em sociedades presas a tradições milenares. Casos recentes de seqüestros e assassinatos de moças por maridos ou namorados enciumados demonstram como a prepotência masculina ainda está enraizada em nossos costumes.

É preciso não confundir “autoridade” com “poder”. O étimo de auctoritas vem do verbo latino “augere”, que significa aumentar, crescer, desenvolver, adquirir beleza e fama. O príncipe Caio Otávio, sobrinho de Júlio César, foi denominado “Augusto” pela grandiosidade de sua personalidade, que deu paz e prosperidade ao povo romano. Já seus sucessores, os imperadores Nero, Calígula etc., tiverem o poder, transmitido por herança genética, mas não autoridade, pois foram tiranos cruéis, nocivos à nação. Numa democracia, o poder vem do povo mediante eleições para a escolha de representantes. Mas nem o voto nem a nomeação dão autoridade, que se consegue somente através do mérito, do empenho pessoal. Podemos atribuir a um governante, político ou religioso, poder, mas nem sempre autoridade.