Os dez mandamentos, como outras leis de Moisés que constituem a Torá hebraica, na sua essência, não é matéria original, nem coerente. Portanto, não pode ser considerado objeto de inspiração divina. Eis alguns motivos:
1) O Decálogo é a realaboração de uma coletânea de leis existentes antes de Moisés. Trata-se do famoso “Código Hamurábi”, que exerceu grande influência na Palestina e em todo o Médio Oriente. Hamurábi (1793-1759), sexto rei da 1ª dinastia de Babilônia, ocupou outros reinos da Mesopotâmia e se tornou famoso por ter gravado numa coluna tumular rochosa um código de direito consuetudinário. Também no Livro dos Mortos, do qual os antigos egípcios colocavam alguns trechos nos sarcófagos para orientar as almas dos defuntos, encontramos normas morais semelhantes aos preceitos de Moisés. Os estudiosos afirmam que, anteriormente a Moisés e na Ásia Meridional, havia muitas lendas sobre tábuas celestes que haviam descidas miraculosamente à terra e comunicado conhecimentos secretos de caráter sagrado.
2) A Torá hebraica é um complexo de leis (agrária, familiar, penal, ritual), oriundo de costumes milenares e de caráter teocrático, de forma que a transgressão de uma lei civil era considerada um pecado contra Deus. Ora, sua codificação pressupõe um trabalho de desenvolvimento que começou antes e continuou depois de Moisés. A disseminação de normas éticas ao longo do Pentateuco e de outros livros, especialmente os didáticos (Jô, Salmos, Eclesiastes) prova que não houve “revelação” divina instantânea, diretamente dirigida a um Patriarca num tempo e num espaço delimitado.
3) A contradição sobre o castigo divino, apenas para darmos um exemplo entre as inúmeras incongruências que podem ser relevadas no Velho e no Novo Testamento, é outro fator que nos induz a não acreditar na existência de uma Palavra divina revelada ao homem. Repetimos a proposição do Gênesis (20, 5):
“Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus cioso que pune a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e à quarta geração dos que Me ofendem”.
Diferentemente, no Deuteronômio (24, 16) está escrito:
“Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela culpa dos pais: cada um será morto por seu próprio pecado”.
Em vista de que se, conforme afirmam rabinos e exegetas cristãos, Moisés é o autor dos dois Livros, é lícito perguntar qual dos dois textos bíblicos devemos considerar verdadeiro e, portanto, sagrado. Evidentemente, optaremos pela segunda versão, pois seria um absurdo supor que Deus seja menos justo do que um juiz humano que não transfere a culpa para um inocente. O primeiro texto, então, além da crueldade, atesta a mentira de Moisés, que enganou seu povo ao inventar uma revelação divina que nunca existiu.
4) O tratamento que Moisés dá à mulher é próprio de uma cultura (melhor dizer “barbárie”!) primitiva e machista, incompatível com uma inspiração divina. O profeta, no décimo mandamento, considera a mulher como um “objeto”, igual à casa do próximo, ao seu touro, ao seu jumento, ao seu escravo (mais um absurdo: um deus admitiria a escravidão humana?), que não deve ser “cobiçado”. O verbo utilizado nos enseja pôr em evidência mais uma estupidez: como um legislador pode proibir até o “desejo”, o ato do pensamento, algo que é incontrolável por natureza, proibindo-se não apenas o fazer, mas também o querer e o pensar?
5) É mais fácil entender que a “teofania” (aparição de Deus) do Sinai foi imaginada por Moisés para dar sustentação ideológica aos preceitos que se encontram no Decálogo, como a outras prescrições religiosas. Se Moisés dissesse: “eu” ordeno que o povo adore um único deus, que não mate, roube ou peque contra a castidade, evidentemente, seu discurso não teria a aceitação que teve. Colocando Jeová como sujeito da enunciação, o Patriarca dava credibilidade ao seu discurso, pois seria a palavra de Deus e não do Homem. Esta é a postura ideológica comum a todos os “profetas”, os homens que fingiram ou realmente se acharam inspirados por alguma divindade ao longo da história da humanidade. Se não fosse assim, ficaria difícil entender porque Deus privilegiaria o povo hebreu, confiando só a ele revelações sobrenaturais, em certa época e num determinado espaço, prejudicando os demais povos com a privação da luz e do socorro. Talvez seja deficiência mental minha, mas não consigo conceber um Deus faccioso, cruel, injusto! Evidentemente, esta descrição da onipotência, do arbítrio, da vingança ilimitada convém mais a um imperador assírio, babilônico ou persa daquela época do que a uma divindade, sendo a maior prova de que a religião é criação do homem, espelhando a mundividência relativa a um tempo e espaço circunscritos.
6) A moral judaica é incompatível com um Deus imaginado, pela sua própria essência, como um ser justo e misericordioso: sacrifícios de sangue humano (Abraão pronto a imolar seu filho Isaac) e de animais (o cordeiro na comemoração da Páscoa); obrigação do corte do prepúcio; sexo incestuoso (Lot seduzido por suas filhas); poligamia e subjeção das mulheres; a prática da escravidão; a transferência da culpa individual para a coletividade. Dir-se-á que os princípios éticos foram ministrados de acordo com as condições intelectuais e psíquicas daquela época. Mas tal concepção de Deus não é “demasiadamente humana”, como diria Nietzsche? Como preceitos limitados no tempo e no espaço puderam se tornar dogmas de fé, apresentados como verdades eternas e absolutas?