Pensar é preciso/III/O Judaísmo depois de Cristo

O povo hebreu não reconheceu na figura de Jesus Cristo, pobre e crucificado, o tão esperado Messias, o enviado de Deus. Tanto é verdade que, pelo calendário judaico, o ano cristão de 2007 corresponde ao ano hebraico de 5768. A diferença dos 3.761 anos deve-se ao fato de que a contagem judia inicia com a data mítica do nascimento de Abraão, o primeiro patriarca. Os judeus sonhavam (e continuam sonhando) com o advento de um Messias como herói glorioso, tipo rei Davi, que viesse salvar sua gente dos invasores estrangeiros. Dispersos pelo mundo, continuaram a cultivar sua fé, acreditando na revelação que seu deus Jeová teria feita a Moisés e aos outros profetas.

No começo do séc. II d.C., começa a compilação do Talmude, que vai se tornar a nova bíblia judaica. Os hebreus consideram sagrados apenas os livros do Velho Testamento escritos em hebraico: Pentateuco (Torá ou Lei de Moisés), os Profetas (Neblim) e os Hagiógrafos (Ketubim). Visto como a interpretação autêntica da Torá mosaica, o Talmude divide-se em duas partes: Mishna, que contém a “Lei Oral”, que a tradição atribui a Moisés, e Gemara, os comentários dos rabinos. Atualmente, o texto mais utilizado pelos estudiosos judeus é o Talmude da Babilônia, editado no séc.VI d.C.

No fim do séc. XII, Maimônides, o maior teólogo hebreu, fixou os 13 princípios da fé judaica: 1) Deus é o criador e provedor do mundo; 2) Ele é uno e único; 3) Ele é puro espírito e não pode ser representado sob nenhuma forma; 4) Ele é eterno; 5) somente a Ele devemos elevar nossas orações; 6) todas as palavras dos profetas de Israel são verdadeiras; 7) Moisés foi o maior dentre os profetas; 8) a Lei conhecida pelos judeus foi dada por Deus a Moisés; 9) ninguém tem o direito de substituí-la nem de modificá-la; 10) Deus conhece todas as ações e todos os pensamentos dos homens; 11) Ele recompensa aqueles que cumprem seus mandamentos e pune aqueles que os transgridem; 12) Ele enviará o messias anunciado pelos profetas; 13) Ele dará vida aos mortos.

O Talmude não é apenas uma coleção de preceitos religiosos e morais, mas um ordenamento da vida dos que acreditam na religião judaica, legiferando sobre política, costumes, a prática da justiça, a necessidade do trabalho, o comportamento na guerra, as relações familiares (casamento entre pessoas da mesma fé, batismo pela circuncisão etc.).

O sofrimento do “hebreu errante”, o apátrida que é perseguido nas nações onde se hospeda, privado de exercer os mandamentos da sua fé, não é um mito, mas uma realidade histórica. No séc. XII, a Igreja Católica criou o Tribunal da Santa Inquisição para combater várias heresias (albingenses e cátaros, principalmente). Na península ibérica, a Inquisição atuou também contra os chamados “cristão-novos”, os hebreus que eram obrigados a renunciar ao Judaísmo e forçados a aderir ao Catolicismo. Da Espanha e de Portugal a perseguição contra os judeus chegou também ao Brasil e a outros países da América Latina. As penalidades iam do confisco dos bens, até à prisão e à condenação à morte. Essa infâmia só terminou na tradição lusitana com a Reforma do Marques de Pombal (1699-1782).

Muito pior ainda foi o “Holocausto”, etimologicamente significando uma imolação sagrada, a consumação da vítima sacrifical pelo fogo. Modernamente, passou a designar os 12 anos de perseguição nazista contra os judeus (1933-1945), especialmente durante a Segunda Guerra Mundial. Os campos de concentração e os fornos crematórios foram criados para realizar uma limpeza étnica, visando o extermínio de todos os judeus residentes na Europa. É incompreensível tanto ódio no coração humano, pois foram barbarizados velhos, crianças e gente inocente.

Mas, enfim, certa justiça foi feita: em 1947, atendendo a uma resolução da ONU, foi criado o Estado de Israel, numa faixa do território da Palestina, com sede em Jerusalém, que passou a ser considerada uma cidade internacional. Realizava-se, assim, o antigo sonho do Sionismo (de “Sion”, colina de Jerusalém), o movimento que reunia os judeus da diáspora, visando o retorno à antiga Canaã. O Sionismo foi intenso especialmente na época do Romantismo, quando na Europa se cultivou o sentimento do Nacionalismo. Em 1901 foi criado o Fundo Nacional Judeu para a compra de terras na Palestina, que deu início à imigração de hebreus.

Israel, porém, ganhara a pátria, mas não a paz. Após mais de três milênios, continua a luta entre judeus e seus vizinhos. E isso porque, o que é considerado “reconstrução” para os primeiros, é tido como invasão para os segundos. Os árabes não aceitam o mito bíblico da Terra Prometida por Jeová ao povo judeu. Na verdade, Israel não é a terra natal e original do povo hebraico, pois Moisés ocupou pela força bélica a terra onde habitavam os antigos cananeus. A própria etimologia da palavra Jerusalém, “fundamento de Shalem”, primitiva divindade da terra de Canaã, nos autoriza a pensar assim.

Enfim, por baixo das diferenças étnicas, predomina o contrastante credo religioso que, como sempre, fomenta ódio e violência. Na região do Médio Oriente, atualmente, continua se travando uma briga entre as três religiões monoteístas: Jeová (representado pelo seu profeta Moisés) vs Alá (representado pelo profeta Maomé) vs Deus Pai (representado pelo Filho, Jesus Cristo). E tais deuses, embora concebidos como seres onividentes, onipotentes e sumamente misericordiosos, dificilmente entram em acordo. Seria mais fácil se os homens, relegando o sentimento religioso à esfera individual, se entendessem entre si, usando a razão e o bom senso, preocupados apenas em viver da melhor forma possível neste mundo, do qual não é nos dado conhecer as origens, perdidas na noite dos tempos, nem prever seu fim.

Na história de qualquer religião, podemos notar a contradição entre a fixidez dos dogmas e a necessidade da evolução. No caso do Judaísmo, percebemos como o povo hebraico partiu de formas religiosas mesquinhas e violentas, próprias de gente primitiva e selvagem: Moisés foi assassino, fujão, polígamo, guerreiro cruel e vingativo, conforme está escrito no livro do Gênesis, de que ele próprio é considerado autor. E os Patriarcas, os outros Profetas e todos os seus seguidores não foram melhores. Mas, aos poucos, por evolução progressiva, o povo israelita sentiu a necessidade de aceitar o monoteísmo, de acreditar no messianismo e na retribuição futura, de depurar suas doutrinas, visando alcançar uma maior universalidade e espiritualidade.

Esta tese da evolução da fé judaica parece ser aceita por quase todos os estudiosos da Bíblia. Os rabinos chamavam a exegese dos textos bíblicos de midrash (“investigação”), pois trechos apresentavam interpretação diferente a cada leitura. A Palavra dos Profetas, portanto, como o sentido da Palavra dos Poetas, é inesgotável. Por isso, Religião e Literatura, por usarem uma linguagem polissêmica (sujeita a várias interpretações), são ramos de conhecimento perene e universalmente estudados.

Mas, se se admitir a contínua evolução do dogma religioso, a Escritura podendo ter erros de interpretação, onde fica a verdade da Revelação divina? Será que Jeová foi revelando sua doutrina a uma miríade de profetas, aos poucos, em picadinhos, ao longo de um milênio? E, se os vários redatores do Velho Testamento apresentam passagens conflitantes ou inverdades, como julgar quem estaria com a razão? A verdade é que em todas as épocas da humanidade e em todas as regiões do mundo sempre surgiram homens que se julgaram dotados de inspiração profética. Em quem acreditar, então? Simplesmente, em nenhum!

Efetivamente, com base em que critério pode-se acreditar que o povo hebreu foi escolhido por Deus, em detrimentos de outros povos? Os judeus, por acaso, são mais bonitos, mais inteligentes ou mais devotos do que outros seres humanos? Pensar assim é negar a própria existência de Deus, pois não se concebe uma divindade facciosa, arbitrária, discriminatória, vingativa, injusta. Voltamos a dizer, então, que seria a concepção de um Deus “humano...demasiadamente humano”, para usar outra vez a expressão de Nietzsche.

Talvez seja o orgulho dos judeus, que se acham os prediletos de Deus, uma raça superior que não admite miscigenação, a suscitar o ódio de nazistas (outra facção humana que se acha privilegiada!) e de outros grupos anti-semitas. É uma pena que não se chegue a uma convivência pacífica entre as várias etnias que habitam o Médio Oriente. Li, recentemente, sobre um projeto turístico internacional, que pretende recriar a rota percorrida pelo patriarca Abraão. A idéia é ligar, por uma estrada de rodagem, o Egito à Turquia, passando por Hebron (Cisjordânia), Jerusalém (Israel), Monte Nebo (Jordânia), Damasco (Líbano), chegando até Urfa, na Turquia, na tentativa de integrar vários povos de raças e credos diferentes.

Mas isso só será possível se o homem colocar a esperança de salvação não num outro mundo, mas neste em que vivemos, não na teologia, mas na filosofia, não na fé, mas na razão. Acima de qualquer preconceito religioso, temos que colocar o bom senso, visando uma convivência pacífica entre os povos. A Palavra do Deus de todos os profetas (Moisés, Cristo ou Maomé) converge numa moral natural. Devemos a Emanuel Kant, o filósofo alemão que revolucionou o estudo da ética, colocando a Razão ao centro do conhecimento (como Copérnico colocara o Sol ao centro do universo), a reflexão mais profunda sobre o estabelecimento de uma moral universal. Seu famoso imperativo categórico pode ser assim formulado:


“ame teu próximo, de forma a não causar a outra pessoa
o mal que não gostaria que fosse feito a ti!”.


Tal mandamento, que condensa todos os princípios éticos, no tempo e no espaço, não precisa de justificativa religiosa, pois é intrínseco ao viver em sociedade. Enfim, ao terminar este pequeno estudo sobre o Judaísmo, por justiça, é bom reconhecer que descendentes de Moisés, que viveram longe do pequeno mundo da Palestina, se tornaram benfeitores da humanidade. De um povo oprimido e ridicularizado surgiram gênios gigantescos no campo das ciências sociais, da indagação da psique humana e da compreensão das leis do universo. Falarei da contribuição dos judeus Karl Marx, Sigmund Freud e Albert Einstein em lugar apropriado.