PEro de Faria deſpois q̃ leo eſta carta do Rey dos Batas, & entendeo do ſeu Embaixador o negocio a que vinha, o fez agaſalhar o mais honradamente que então foy poſsiuel. E paſſados
dezaſſete dias deſpois que chegara a Malaca, o deſpidio bem deſpachado, & ſatisſeito do que viera buſcar, porque lhe deu ainda algũas couſas alem das que lhe pidira, como foraõ cem panellas de poluora, & rocas, & bombas de ſogo, com que ſe partio tão contente deſta fortaleza, que chorando de prazer, hum dia parante todos os que eſtauão no taboleyro da igreija, virandoſe para a porta principal della, com as maõs leuantadas, como quem fallaua com Deos, diſſe publicamẽte. Prometo em nome do meu Rey a ty Senhor poderoſo, que com deſcanço & grande alegria viues aſſentado no tiſouro de tuas riquezas, q̃ faõ os eſpiritos formados da tua vontade, que ſe te praz darnos victoria contra eſte tyranno Achem, para que de nouo lhe tornemos a ganhar o q̃ elle com tamanha treição & tanta perfidia nos tomou nos dous lugares de Iacur & Lingau, de ſempre com muyta lealdade & agardecimento te conhecermos na ley Portugueſa da tua ſanta verdade, em que conſiſte o bem dos nacidos, & de nouo te edificarmos em noſſa terra caſas limpas de cheyros ſuaues, onde todos os viuos te adorem cõ as maõs aleuantadas, aſsi como na terra do grãde Potugal ſe fez ſempre ategora. E aſsi te prometo & juro com toda a firmeza de bom & leal, que meu Rey não tenha nunca outro Rey ſe não eſte grande Portuguez, que agora he ſennor de Malaca. E embarcãdoſe logo na lanchara em que viera, ſe partio, & o foraõ acompanhando dez ou doze baloẽs até a ilha de Vpe que eſtaua daly pouco mais de meya legoa, onde o Bendara de Malaca, que he o ſupremo no mando, na honra, & na juſtiça dos Mouros, por mandado de Pero de Faria lhe deu hum grande banquete ao ſeu modo, feſtejado com charamellas, trombetas, & araballes, & com muſicas de boas falas à Portugueſa, com arpas, & doçaynas, & violas darco, que lhe fez meter o dedo na boca, que entre elles he ſinal de grandiſsimo eſpanto. Vinte dias deſpois da partida deſte Embaixador, cubiçando Pero de Faria o muyto proueito que alguns Mouros lhe diziaõ que naquelle reyno podia fazerſe em ſazendas da India ſe as lâ mãdaſſe, & o muyto mais que poderia tirar do retorno dellas, armou hũa embarcação das que naquella terra ſe chamão Iurupangos, que ſaõ do tamanho de hũa carauella pequena, em que por então não quiz arriſcar mais que ſôs dez mil cruzados de emprego, com os quais mandou hum Mouro natural dahy de Malaca para os beneficiar. E cometeome ſe queria eu lá yr, porque leuaria niſſo muyto goſto, para ſo color de Embaixador yr viſitar de ſua parte o Rey dos Batas, & yr tambem com elle ao Achem, para onde então ſe eſtaua fazendo preſtes, porq̃ quiça me montaria iſſo algum pedaço de proueito, & para que de tudo o que viſſe naquella terra lhe deſſe verdadeyra informação, & ſe ou1uia tambem là praticar na ilha do ouro porque determinaua de eſcreuer a ſua
alteza o que niſſo paſſaſſe. Não me pude eu então eſcuſar de fazer o que me elle pidia, inda que algum tanto arreceaua a yda, aſsi por ſer terra noua, & de gente atraiçoada, como porque inda então não tinha mais de meu que ſos cem cruzados, por onde não eſperaua fazer là proueito. Mas em fim me embarquey na companhia do Mouro que leuaua a fazẽda. E atraueſſando o Piloto daquy de Malaca ao porto de Surotilau, que he na coſta do reyno de Aarù,velejou ao longo da ilha Çamatra por eſta parte do mar mediterraneo, atè hum rio que ſe dizia Hicandure, & nauegando mais cinco dias por eſta derrota, chegou a hũa fermoſa bahia noue legoas do reyno Pecdir em altura de onze graos, por nome Minhatoley, daquy cortou toda a traueſſa da terra (a qual ja aquy neſta paragem não he de mais largura que de ſós vinte & tres legoas) atè vermos o mar da outra banda do Oceano, & nauegando por elle quatro dias com tempos bonanças, foy ſurgir num rio pequenode ſete braças de fundo, que ſe dizia Guateamgim, pelo qual vellejou ſeis ou ſete legoas adiante, vendo por entre o aruoredo do mato muyto grande quantidade de cobras, & de bichos de tão admiraueis grandezas & feiçoẽs, que he muyto para ſe arrecear contalo, ao menos a gente q̃ vio pouco do mũdo, porque eſta como vio pouco, tambem cuſtuma a dar pouco credito ao muyto q̃ outros viraõ. Em todo eſte rio, que não era muyto largo, auia muyta quantidade de lagartos, aos quais com mais proprio nome pudera chamar ſerpentes, por ſerem algũs do tamanho de hũa boa almadia, cõchados por cima do lombo, com as bocas de mais de dous palmos, & tão ſoltos & atreuidos no cometer, ſegũdo aquy nos afirmaraõ os naturaes da terra, que muytas vezes arremetião a hũa almadia quando não leuaua mais que tres quatro negros, & açoçobrauão co rabo, & hum & hũ os comião a todos, & ſem os eſpedaçarem os engulião inteyros. Vimos aquy tambem hũa muyto noua maneyra, & eſtranha feyção de bichos, aque os naturaes da terra chamão Caqueſſeitão, do tamanho de hũa grande pata, muyto pretos, conchados pelas coſtas, com hũa ordem de eſpinhos pelo fio do lombo do comprimento de hũa penna de eſcreuer, & com azas da feição das do morcego, co peſcoço de cobra, & hũa vnha, a modo de eſporaõ de gallo na teſta, co rabo muyto comprido pintado de verde & preto, como ſaõ os lagartos deſta terra. Eſtes bichos de voo, a modo de ſalto, cação os bugios, & bichos por cima das aruores, dos quais ſe mantem. Vimos tambem aquy grande ſoma de cobras de capello, da groſſura da coxa de hum homem, & tão peçonhentas em tanto eſtremo, que dizião os negros que ſe chegauão com a baba da boca a qualquer couſa viua, logo em prouiſo cahia morta em terra, ſem auer contrapeçonha, nem remedio algum que lhe aproueitaſſe. Vimos mais outras cobras
que não ſaõ de capello, nem tão peçonhentas como eſtas, mas muyto mais compridas & groſſas, & com as cabeças do tamanho de hũa vitella, eſtas nos dizião elles, que caçauão tãbem de rapina no chaõ, por eſta maneyra ſobenſe encima das aruores ſilueſtres, de que toda a terra he aſſaz pouoada, & enroſcando a ponta do rabo em hum ramo ſe decem abaixo, deixando ſempre a preſa feita em cima, & poſta a cabeça no mato, & com orelha por eſcuta pregada no chaõ, ſentem com a calada da noite toda a couſa que bolle, & em prepaſſando o boy, o porco, o veado, ou qualquer outro animal, o ferraõ com a boca, & como ja tem feita a preſa co rabo là encima no ramo, em nenhũa couſa pregaõ que a não tragão a ſy, de maneyra que couſa viua Ihe não eſcapa. Vimos aquy tainbem muyto grande quantidade de monos pardos & pretos, do tamanho de grãdes rafeyros, dos quais os negros tẽ muyto mayor medo que de todos eſtoutros animaes, porque cometem com tanto atreuimento, que ninguem lhe pode reſiſtir.