FIcãdo eu (como ja diſſe) tão paſmado, & tão fora de mim, que nem fallar, nem chorar pude por eſpaço de mais de tres horas, nos tornamos o outro marinheyro & eu a meter no mar ate pela menham, que vimos vir hũa barcaça demandar a boca do rio, & tanto que emparelhou com noſco, nos tiramos da agoa, & poſtos aſsi nùs em joelhos, &com as maõs aleuantadas
lhe pidimos que nos quiſeſſem tomar. Os que vinhaõ na barcaça, em nos vẽdo leuaraõ remo, & deſpois de eſtarẽ hũ pouco quedos, vendo o triſte & miſerauel eſlado em q̃ eſtauamos, & entendendo q̃ eramos gente perdida no mar, ſe chegaraõ mais perto, nos perguntaraõ o que queriamos, nos lhe reſpondemos que eramos Chriſtaõs naturaes de Malaca, & q̃ vindo de Aarù nos perderamos auia ja noue dias, pelo que lhe pediamos pelo amor de Deos q̃ nos quiſeſſem leuar conſigo para onde quer que foſſem. A que hũ q̃ parecia ſer o principal delles reſpondeo, não eſtais vós de maneyra, ſegundo vejo em voſſas diſpoſiçoẽs, que poſſais merecer o q̃ nos comerdes, pelo que vos ſeria bom, ſe tendes algum dinheyro eſcondido dardesnolo, & então vſaremos com voſco deſſa proximidade que voſſas lagrimas nos pedem, porque doutra maneyra não tendes remedio. E fazendo com iſto moſtra de ſe quererem tornar, lhe tornamos a pedir chorãdo q̃ nos tomaſſem por ſeus catiuos, & nos foſſem vẽder onde quiſeſſem, porque por mim q̃ era Portuguez, & muyto parente do Capitaõ de Malaca lhe darião em toda a parte o que pediſſe: ao que elles reſponderaõ, ſomos contentes cõ cõdição q̃ ſe aſsi não for como dizeis, vos auemos de matar cõ açoutes, & atados de pès & de maõs, vos auemos de lançar viuos ao mar, & nos lhe diſſemos q̃ aſsi o fizeſſem. E ſaltãdo logo quatro delles em terra, nos meteraõ na embarcaçaõ, porq̃ a eſte tẽpo eſtauamos nos tais que nem bulirnos podiamos. Deſpois de nos terem dẽtro, parecendolhes que com feros & açoutes confeſſariamos onde tinhamos eſcondido algum dinheyro, que ſempre cuydaraõ que lhe deſſemos, nos ataraõ a ambos ao pè do maſto, & com duas rotas dobradas nos ſangraraõ muyto ſem piedade, & por eu ja então eſtar quaſi morto, me não deraõ hũa certa beberagem como deraõ ao pobre do meu companheyro, que foy hum certo modo de cal delida em ourina, com que logo lhe fizeraõ vomitar os figados, de q̃ morreo daly a hũa hora, & como não lhe acharaõ no que vomitara ouro nenhũ como tinhão para ſy, quis noſſo Senhor q̃ iſſo foy cauſa para me não fazerẽ a mim outro tanto, mas enſalmourandome com a meſma beberagem as feridas dos açoutcs, por não morrer dellas, foy a dor em mym tão exceſsiua, q̃ de todo eſtiue à morte. Partidos nos daquy deſte rio que ſe chamaua Ariſſumhee, fomos ao outro dia à veſpora ſurgir de fronte de hũa grande pouoaçaõ de caſas palhaças, chamada Siaca, do reyno de Iambee, onde me tiueraõ vinte e ſete dias, em q̃ prouue a noſſo Senhor que conualeci dos açoutes. Vẽdo então os q̃ tinhão parte em mim, que erão ſete, que lhes não ſeruia eu para o officio que tinhão, q̃ e^ andarem ſempre metidos na agoa peſcando, me puſeraõ em leilão por tres vezes, ſem em todas ellas auer quem quiſeſſe fazer lanço em mim, pelo que deſconfiados de acharem quem
me compraſſe, me lançaraõ fora de caſa, por me não darem de comer, pois lhe não podia preſtar para nada. E auendo ja trinta & ſeis dias que eſtaua fora do ſeu poder, deitado ao almarge, como ſindeyro ſem dono, pedindo de porta em porta algũa fraca eſmolla que muyto raramente me dauão, por ſer pobriſsima toda a gente daquella terra; permitio noſſo Senhor que jazendo eu hũ dia lançado na praya ao Sol, lamentando minhas deſauenturas, acertou de paſſar hum Mouro natural da ilha de Palimbão, que ja por algũas vezes tinha ido a Malaca, & conuerſado com Portugueſes. Eſte vendome jazer aſsi deſpido na area, me perguntou ſe era Portuguez, & que lhe não negaſſe a verdade, a que eu reſpondy que ſy, & de parẽtes muyto ricos, & que por mim lhe poderião dar quanto pediſſe, ſe me leuaſſe a Malaca, porque era ſobrinho do Capitaõ da fortaleza, filho de hũa ſua irmam: a que elle reſpondeo: pois, ſe es eſſe que dizes, que peccado foy o teu por onde vieſte atão triſte eſtado como eſſe em que te vejo? eu então lhe dey conta miudamente da minha perdiçaõ, & da maneyra q̃ os ſete peſcadores aly me trouxerão, & como ja me tinhão lãçado fora de caſa, por não acharẽ quẽ me cõpraſſe. Elle dando moſtras de grãdiſfimo eſpãto, deſpois de eſtar algũ eſpaço pẽſatiuo, me diſſe. Eu (como podes ſaber) ſou hũ mercador pobre, & tão pobre, q̃ por minha poſsibilidade não chegar a mais q̃ a cem pardaos, me mety neſte trato das ouas dos ſaueis, cuydando q̃ por eſta via pudeſſe ter melhor remedio de vida, o que por minha mofina não pude, & porq̃ agora tenho ſabido que em Malaca poſſo fazer algum proueito, ſe o Capitão & os officiais da alfandega me não fizerẽ os agrauos de q̃ tenho ouuido queixar a muytos que lhe fazẽ neſſa fortaleza nas fazendas q̃ a ella leuão, folgaria de yr là: & ſe te parecer que por teu reſpeito poſſo eu là yr ſeguro de receber opreſſaõ ou agrauo, entenderey em te comprar aos peſcadores de que me dizes que es catiuo. Eu lhe reſpondy com aſſaz de lagrimas, que muyto bem via que não eſtaua eu de maneyra paraque ſe elle fiaſſe do que lhe eu diſſeſſe, aſsi pelo baixo eſtado em que me via, como porque lhe poderia parecer q̃ eu, por deſejar de me ver liure de tão triſte catiueyro, lhe podia fazer mais caſo de mim do que là em Malaca podia achar, mas que ſe elle ſe quiſeſſe fiar em meu juramento, ja que então não tinha outro penhor que lhe deſſe, que eu lhe juraria, & lhe daria hum eſcrito meu que ſe me leuaſſe a Malaca, que o Capitão lhe faria por iſſo muyta honra, & lhe não tomarião de ſua fazenda couſa nenhũa, & lhe pagariaõ dez vezes dobrado tudo o que por mim deſſe. O Mouro me reſpondeo: ora ſou contente de te comprar, & leuarte a Malaca, com tanto que não digas nada diſto que agora paſſey comtigo, porque me não aleuãtem o preço tão alto que te naõ
poſſa ſer bom inda que queyra. E jurandolhe eu então que aſsi o faria, com todas as abaſtanças que por então me pareceo que eraõ neceſſarias a meu propoſito, ſe fiou elle dellas bẽ leuemente.