CAP. XXXIII.
Como indo eu de Malaca para o reyno de Pão achey vinte & tres Christãos perdidos no mar.

AGora me quero tornar ao propoſito de q̃ hia tratando. Sendo eu, como ja atras tenho dito, cõualecido da doẽça q̃ trouxe do catiueyro de Siaca, Pero de Faria deſejndo de me abrir algũ caminho por onde eu vieſſe a ter algũa couſa de meu, me mandou em hũa lanchara de remo ao reyno de Pão, cõ dez mil cruzados de ſua fazẽda, para os entregar a hũ ſeu feitor q̃ là reſidia, por nome Tome Lobo, dahy me paſſar a Patane, que era outras cem legoas auante, cõ hũa carta & hũ preſente para o Rey, & tratar cõ elle a liberdade de hũs cinco Portugueſes q̃ no reyno de Sião eſtauão catiuos do Monteo de Banchà ſeu cunhado. Partindo eu de Malaca cõ eſte deſſenho, aos ſete dias da minha viagem, ſendo hũa noite tanto auante como a ilha de Pullo Timão, que pode ſer nouenta legoas de Malaca, & dez ou doze da barra de Pão, quaſi meyo quarto da lua paſſado, ouuimos por duas vezes hũa grande grita no mar, & não vẽdo nada por cauſa do grande eſcuro que ainda fazia, ficamos todos muyto ſuſpenſos, porq̃ não ſabiamos atinar co que aquillo ſeria, & mareando as vellas, fomos guinando para onde tinhamos ouuido o tom da grita, vigiando todos cos roſtos baixos, para vermos ſe podiamos deuiſar o que aquillo foſſe. E continuando neſta confuſaõ obra de hũa hora, enxergamos muyto ao lõge hũa couſa preta & raſa, fem vulto nenhum, & não fabendo determinar o que ſeria, tomamos de nouo a auer conſelho ſobre o que niſſo fariamos, & com quanto na lanchara não eramos mais que quatro Portugueſes, os pareceres foraõ muytos & muyto differentes hũs dos outros, em que ouue requereremme q̃ não quiſeſſe ſaber o q̃ me não releuaria, & me foſſe para onde me mandaua Pero de Faria, porque perder hũa ſó hora daquelle tempo, era pòr a viagem em vẽtura, & a fazenda em riſco, & eu ficar dãdo mà conta de mim ſe me acõteceſſe algũ deſaſtre. A q̃ eu reſpondy, que por nenhũa couſa que ſocedeſſe auia de deixar de ſaber o que aquillo era, porq̃ ſe eu erraſſe niſſo, como elles dizião, ſó a Pero de Faria, cuja era a lanchara & a fazenda, auia de dar a conta, & não a elles que não tinhão aly mais que ſuas peſſoas ſomente, em q̃ hia tão pouco como na minha. E em quãto duraraõ eſtas altercaçoẽs, quiz Deos q̃ eſclareceo a menhã, em q̃ diſtintamente vimos q̃ era gẽte que ſe perdera no mar, q̃ andaua ſobre paos, então lhe puſemos aſoutamẽte a proa a vella & a remo, & chegandonos bem a elles para que nos conheceſsẽ, gritaraõ muyto alto por ſeis ou ſete vezes, ſem dizerem outra couſa, ſenão, Senhor Deos miſericordia, com a qual nouidade fificamos

todos tão cõfuſos & paſmados q̃ quaſi ficamos como fora de nos, & mãdãdo muyto depreſſa lãçar os remeyros da lanchara ao mar, os metemos todos dẽtro, q̃ erão vinte & tres peſſoas, quatorze Portugueſes, & noue eſcrauos, os quais todos vinhaõ taõ disformes nas figuras dos roſtos q̃ metião medo, & tão fracos q̃ nem a falla podião bem lançar pela boca. E deſpois de ſerem recolhidos & agaſalhados o milhor q̃ então foy poſſiuel, lhe perguntamos pela cauſa da ſua deſauentura: a q̃ hum delles reſpondeo com aſſaz de lagrimas, Senhores, a mim me chamão Fernão Gil Porcalho, & eſte olho q̃ me vedes menos, me quebraraõ os Achẽs na tranqueyra de Malaca, quãdo da ſegunda vez vieraõ ſobre dom Eſteuão da Gama, o qual deſejando de me fazer merce, por me ver tão pobre como era naquelle tẽpo, me deu licença q̃ foſſe a Maluco, onde prouuera a Deos q̃ não fora, ja q̃ tal ſucceſſo auia de ter a minha yda, porq̃ deſpois q̃ party do porto de Talãgame, q̃ he o ſurgidouro da noſſa fortaleza Ternate, auendo ja vinte & tres dias que nauegamos com tempos bonãças, & bem cõtentes de nòs, em hum junco que trazia mil bares de crauo, que valiaõ mais de cem mil cruzados, quiz a minha triſte vẽtura por muytos peccados que contra Deos comety, que fendo Noroeſte ſueſte com a ponta de Surobaya, na ilha da Iaoa, nos deu hum tempo de Norte tão rijo, q̃ com a vaga dos mares cruzados, & co grande eſcarceo q̃ o mar leuãtou, nos abrio o junco pela roda de proa; pelo qual nos foy forçado alijar o conuès, & corrẽdo aſsi aquella noite a aruore ſeca, ſem moſtrar ao vento hum ſó palmo de vella, por ſerem inſofriueis as refegas q̃ a miude o tempo de ſy lançaua, viemos com aſſaz de trabalho atê meyo quarto da lua rendido, em que ſupitamente ſe nos foy o junco ao fundo, ſem delle ſe ſaluarem mais q̃ eſtas vinte & tres peſſoas que nos aquy vedes, de cento & quarẽta & ſete que nelle vinhamos. E ha ja quatorze dias q̃ andamos ſobre eſtes paos, ſem em todos elles comermos mais q̃ hũ cafre meu q̃ nos falleceo, cõ q̃ todos nos ſuſtẽtamos oito dias, & inda eſta noite nos ſalleceraõ dous Portugueſes que não quiſemos comer, tẽdo diſſo bem de neceſsidade, porq̃ ſem duuida nos parceco q̃ oje ate a menham acabaſſemos cõ a vida eſtes miſeraueis trabalhos em que nos viamos.